Por Marco Vasques, para Desacato.info.
A filósofa Hannah Arendt chamou a primeira metade do século XX de tempos sombrios. Tempos enterrados no obscurantismo, na mentira, na força bélica, no recrudescimento da indústria de armas, também conhecida como indústria da morte. Ao escrever o livro Homens em tempos sombrios, a pensadora elege a solidariedade como valor moral máximo. Evidente que o livro, por relatar as experiências de alguns pensadores e pensadoras importantes para o século XX, comporta outras eleições. Prefiro ficar com a solidariedade como ponto fulcral, porque servirá para nortear a reflexão em torno do livro A rebelião do vivido no jornalismo independente de Florianópolis, 2020, editado pelos selos Pobres & Nojentas e Letra Editorial, e organizado pela editora e jornalista Miriam Santini de Abreu.
Arendt detectou de forma adequada os aspectos sombrios de seu tempo e, infelizmente, hoje, uma multidão se apossou da máscara fúnebre para se aliar a um governo genocida e reprodutor da mentira. A atual situação no Brasil é tão desalentadora, tão inacreditável, que toda sorte de absurdo é defendida nas esquinas, nos bares e nas universidades. São tantos os brasileiros imersos na mais absoluta ignorância, que, em pleno século XXI, a liberdade de expressão e a verdade dos fatos estão em perigo, em constate risco. O Brasil se enlameou na mentira, no ódio, no racismo, na misoginia, na xenofobia, no ataque às instituições públicas, na desconfiança da ciência e no apedrejamento de todas as minorias, ou seja, o Brasil é, hoje, em termos de políticas públicas e de respeito à vida, um dos piores lugares do mundo para se viver.
A chamada mídia tradicional se posiciona, sempre, de forma oblíqua e seletiva. Suas notícias são entrecortadas e logo avolumadas por outra secção que não permite que os problemas sejam, de fato, discutidos em seu cerne. E é aí que entra o livro A rebelião do vivido no jornalismo independente de Florianópolis, que traz oito experiências de como o jornalismo independente pode oferecer – a uma determinada comunidade – um verdadeiro encontro com sua realidade, com seus problemas, com suas questões, e, como, de forma organizada e orgânica, pode estabelecer um debate profundo e franco sobre a vivência coletiva. O livro organizado por Abreu fala de solidariedade, compromisso social e espírito de comunidade.
Algumas experiências como os jornais Bernunça, Folha da Lagoa, Guarapuvu, a revista Pobres & Nojentas e o portal de notícias Daqui na Rede já cumpriram suas funções e são analisados à luz da importância para cada contexto e em cada momento histórico em que atuaram. Já o Portal Catarinas, a Rádio Campeche e o Portal Desacato são experiências que se configuram em plena atividade e em ampla resistência aos assombros de nosso tempo.
Há traços comuns em todas elas: criar uma alternativa de olhar o fato por dentro, pelo ângulo de quem vive o ato que gera o fato; combater o discurso pasteurizado da mídia tradicional; lutar pelo direito ao saber; fazer a defesa de uma comunidade plural; ter aderência às causas minoritárias e se identificar com movimentos sociais, ambientais e humanísticos.
Todas a experiências narradas e discutidas em A rebelião do vivido, ainda que com interesses e atuações em localidades distintas, se aproximam pelo que defendem, pelo que acreditam e pelo que lutam. Há um outro traço bem conhecido, importante de nota, que une todas essas iniciativas independentes: a dificuldade em se viabilizar financeiramente, já que operam fora da lógica comercial do troca-troca feito entre empresários, políticos e mídia tradicional. Contudo, já é sabido de arrancada que independência pressupõe o pensamento crítico, a ausência de concessão com o status quo e com os conchavos políticos – por isso sobreviver se constitui, em si, uma tarefa árdua e complicada.
O livro reúne escritos de Dario de Almeida Prado Júnior, Jeffrey Hoff, Ana Claudia Rocha Araújo, Elaine Tavares, Miriam Santini de Abreu, Claudia Weinman, Anita Grando Martins e do Coletivo Portal Catarinas. Não há surpresas quanto à qualidade dos textos, pois estamos diante de um time de primeiríssima qualidade de jornalistas que atuaram e/ou atuam na imprensa catarinense em seus mais distintos formatos. Quase todos se configuram como relatos de experiência, com exceção da proposta de Claudia Weinman, que optou por entrevistar Raul Fitipaldi e Tali Feld Gleiser sobre o Portal Desacato e suas inúmeras guerrilhas.
O Folha da Lagoa, com sua atuação, possibilitou que um dos lugares mais preciosos de Florianópolis, a Lagoa da Conceição, não se tornasse um fantasma gigante feito Balneário Camboriú. O Bernunça foi tão provocativo, que sofreu processo do então Ministro da Ciência e Tecnologia do Sarney, o catarinense Luiz Henrique da Silveira. O Guarapuvu impulsionou a organização do Maciço do Morro da Cruz, dando vida e voz ao que a mídia tradicional, de forma propositada, silenciava. A revista Pobres & Nojentas, que chegou aos expressivos trinta números, trouxe à pauta saúde, urbanismo, política e cultura. O Portal Desacato tem suas pautas declaradas, pois pratica um jornalismo anti-imperialista, anticapitalista, feminista, antirracista, antifóbico, portanto, luta em favor da vida, da ecologia, do meio ambiente. O Daqui na Rede, capitaneado pelo saudoso Celso Martins, ícone do jornalismo ético e comprometido, ao retratar a vida e a cultura do distrito de Santo Antônio de Lisboa, retratou um pouco do homem e da vida de toda a ilha. A Rádio Campeche é hoje um dos mais importantes projetos comunitários da cidade, e o Portal Catarinas tem revolucionado as discussões sobre gênero – mais que isso, tem feito com que as pautas feministas e as questões de gênero se ampliem para além do umbigo acadêmico.
Enfim, é impossível esmiuçar ao leitor as múltiplas atuações de cada uma dessas experiências. O que se pode afirmar é que todas elas estão arraigadas na vivência solidária e no compromisso comunitário. Tem aquele sentido de solidariedade que Hannah Arendt evoca, sentido este capaz de fazer frente ao niilismo e ao fascismo. A rebelião do vivido no jornalismo de Florianópolis mostra que o enfrentamento é possível. Diz que silenciar diante das injustiças é estar de mãos dadas com o algoz. Evoca o saber como ato solidário. Miriam Santini de Abreu, mulher que une delicadeza e inteligência, ao organizar a obra, perpetua esse espírito solidário de saber e de luta. E para concluir com Hannah Arendt, o livro nos anuncia que é possível enfrentar a “banalidade do mal”.
Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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