O roteiro dos meus dias

13590352_1011343248980844_4173259458972250521_nPor Raul Fitipaldi, para Desacato.info.

Andei uma década brigando com estes pulmões irritadiços que se fizeram idosos entre tosse e asfixias, e se curaram com brisas rejuvenescidas de amores, gritos, negações, descobertas, poemas e palavras de ordem.

Carreguei durante outras cinco décadas, os sonhos no ombro esquerdo e os pesadelos no direito.

Estivei minhas gavetas de dores, risos inconclusos, liberdades condicionais, ódios incondicionais e promessas de amadurecer até tornar-me um fruto vulgar e podre. Prometi e não cumpri.

Prometi envelhecer dignamente, sério, sisudo e circunspecto, como convém na terceira idade. Prometi e menti. Me perdoem.

Diria que pela manhã sou um brasileiro ativo e inquieto, passarinho a voar de latão. Pela tarde, ah, pela tarde um uruguaio cinzento e depressivo, exageradamente convicto do meu manual de queixas e imprecações.

E pela noite, bem, pela noite um portenho que amanhece assim que aparece a Lua no jardim. Janto todos os imaginários que podem entrar na minha boca aberta e perplexa frente à oferta misteriosa das estrelas.

Se o barulho do mar se infiltra pela parede vou guardando a vida, essa que chamam de real, e desvelo a galeria de olhos, cinturas, peles, palavras, e te amo e não te amo mais, e te lembro e não te lembro mais, e digito e apago as pantomimas que a solidão desenha na sombra que projeto na porta do armário.

Destas seis décadas, destas ditaduras, destas democracias pela metade, deste amor tão belo como inexplicável, desta dor pungente até os ossos pela vida que hoje semeia, desta caminhada por dentro das veias e pelas rugas que se foram pintando, lentas e pacientes, destas frases desbotadas, destas todas, todas estas exaltações do privilégio de ter escrito o roteiro dos meus dias, destas ando.

Feliz, vaidoso de que mãos amorosas tenham me obsequiado a pluma, as linhas e o caderno da minha história. O resto, juro que eu li.

Pintura cartaz para Malevich Movie Review, filme sobre meu pintor europeu preferido, Marc Chagall.

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