O retrato dos estudantes que mudaram a cara das escolas estaduais de São Paulo

Não dá para afirmar que eles tenham passado à base de pão e água mas esses eram os ítens mais comuns entre as doações que receberam. Depois vinham macarrão e óleo. Também não da para dizer que estivessem em uma colônia de férias pois era preciso cozinhar, limpar os banheiros, varrer o pátio, dormir no chão e muitas vezes tomar banho no cano com água fria. Era necessário fazer vigia 24 horas por dia a fim de evitar os ataques ameaçados por carros suspeitos que passavam durante a noite.

No sábado passado o gás tinha acabado na escola Antonio Alves Cruz. O almoço estava em risco. Na Fernão Dias Paes, o dia era de faxina pesada. Os banheiros passaram a ser mais limpos que o de costume e não faltava mais papel higiênico. Na escola Maria José, o material didático continuava perfeitamente empilhado e intacto, como deixado pela direção da escola antes da ocupação. Aliás, a ordem em todas as ocupações era não utilizar nem tocar em nada que fosse do estoque da escola. Nem os mantimentos da despensa, nem material de escritório ou de limpeza. As salas que guardavam esses materiais ficaram permanentemente trancadas.

As atividades extras proliferaram. Eram oficinas, manifestações culturais de teatro, saraus e palestras. Os estudantes passaram a ter aulas de disciplinas que não constam na grade curricular. Através de voluntários, assuntos que nunca são tratados na escola passaram a ser e eles fizeram mais sentido na cabeça desses jovens. Era o pragmatismo versus o quadrado da hipotenusa.

A estudante Camila foi quem me chamou a atenção para o fato de que estava tendo aulas que jamais teria pela grade normal. Três dias depois Camila foi presa pela polícia durante um protesto na avenida Nove de Julho.

Demonstraram um apego pela escola e pela educação que uma concepção viciada insistia em dizer que não existia, que eram um bando de vagabundos, sendo que na verdade provaram ser capazes de passar 24 horas por dia na escola se ela for interessante.

O que os alunos reforçaram é que a escola precisa de transformação. Do jeito que é não serve mais, não atende às expectativas dos jovens e não será transferindo-os daqui pra lá que isso irá melhorar. Eles querem sentir-se parte da escola e rejeitam um projeto que reforça ainda mais a imposição, a repressão, que acentua a superlotação de salas, que não investe nem em estrutura nem em conteúdo. Heudes foi um ativista incansável no combate a essa política.

Os estudantes, muitos deles no último ano do ensino médio, deram uma aula de cidadania. Assim como a jovem Eloá, solidária em detrimento a seu ano letivo às vésperas do vestibular, mostrou que a luta não era só contra a reorganização e sim contra o sistema educacional precarizado.

As ocupações representaram ainda uma apropriação do bem público, algo fundamental em se tratando de escolas. Uma oposição à eterna visão de que aquilo que é público não é de ninguém e fica abandonado, degradando. Apropriar-se significa que aquilo finalmente passa a ser público e não do poder público.

Em entrevista, o agora ex-secretário de Educação declarou sentir vergonha do ensino público paulista. Foi um mea culpa incomum (se ele hoje tem vergonha é resultado de um ‘não trabalho’ realizado em duas décadas de tucanato), mas disse o óbvio. Deveria é orgulhar-se dos alunos, sr Herman Voorwald. O ensino é algo abstrato, são as pessoas quem merecem reconhecimento. Reconheça o valor de Lilith que mesmo sendo agredida pelo diretor da escola não correu para baixo da saia da mãe.

Com sua coragem os estudantes conseguiram colocar na prática uma gestão democrática das escolas, algo que o governo não sabe o que é. Os jovens deixaram de ser massa de manobra e passaram a ser massa crítica. Propõe debates e promovem mudanças.

E a emblemática prisão de Elissandro, carregado de modo de cabeça para baixo, simbolizou o que as tais transferências propostas pela atual gestão almejavam: da escola para a prisão. As ocupações eram contra isso também.

Fonte: DCM

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