Por Kelly Vieira[1].
Minha visão do movimento LGBT, mais especificamente do Movimento de Travestis e Transexuais, suscita polêmica na percepção desses avanços.
Começando pelo meu entendimento de que o Movimento de Travestis e Transexuais não conseguirá alcançar a expectativa de mudança ética no comportamento dos sujeitos que compõem a sociedade brasileira. Esta empreitada terá uma dinâmica mais efetiva se suas demandas forem incluídas na agenda do Movimento Feminista. Esta percepção decorre do fato do Movimento Feminista ter sido o detentor do grande marco histórico relacionado à construção de paradigmas revolucionários relacionados ao gênero, sexualidade e família. O feminismo transita com muita intimidade nesses três eixos em função do legado histórico transformador do pensar arcaico/religioso no século passado.
O Movimento de Travestis e Transexuais ainda engatinha no posicionamento com relação ao gênero, sexualidade e família, e o nível de contradições é de tal sorte distante de uma unidade, que inevitavelmente carimba o Movimento com severas características machistas (bruto, descortês, definem por conta próprias seus inferiores) e xenofóbicas (medo, aversão do desconhecido, diferente), similares ao Movimento de Gays e ao Movimento de Lésbicas.
Não é possível negar as inúmeras tentativas de discussão desses três eixos, no entanto, por mais que significativas as tentativas, elas não evoluíram para um consenso a ser defendido pelo Movimento como um todo. Renovar a cada ano uma pauta baseada na tentativa de se identificar a melhor nomenclatura, ou a criação de neologismos, não permitirá que o Movimento identifique a sua direção: são armadilhas cujo teor superficial impede distinguir o caminho a ser seguido. Nem mesmo o quantitativo de trabalhos acadêmicos voltados para o segmento específico, que cada vez mais servem como moeda de troca para um status elitista, pouco, ou nada, contribui efetivamente para o processo evolutivo do Movimento.
São muitas as ciladas que inebriam e viciam: projetos financiados pela área de saúde que se repetem por anos seguidos, sem nenhuma efetividade transformadora da realidade vivenciada pelo segmento; projetos voltados para direitos humanos quando a questão principal está situada nos direitos éticos que teriam maior impacto na nossa sociedade.
O modelo de projetos na linha do ENTLAIDS se transformou num estímulo à paralisia, tornando secundários os objetivos que deveriam representar a totalidade do Movimento. O que se percebe nesses encontros é a facilidade com que se transformam em arenas de inúmeras fobias, dentre as quais a xenofobia, onde gays são contra lésbicas, que são contra travestis, que são contra transexuais que são contra gays, que são contra heterossexuais, que são contra…. Ou então cenários estanques onde palestrantes identificam o que querem dizer à platéia sem a preocupação de saberem o que a platéia tem a dizer. Não raro, tais eventos além de não consolidarem linhas de ações gerais, não atentam para o fato que transformar exige renovar, ceder espaço para as novas lideranças que trazem percepções e força de trabalho que não podem ser entendidas como ameaça, mas como enorme possibilidade de contribuição, sobretudo com relação à criatividade com que as novas gerações se apropriam da história que recebem.
O Movimento de Travestis e Transexuais não pode ser responsável pela destruição do SUS. Por ser um sistema único de saúde, já está implícito que é para todos. Como então entender a criação de um Centro de Referência para Travestis e Transexuais? A Medicina trata homens e mulheres, não existem outros corpos além dessas duas categorias aos quais as doenças e tratamentos se aplicam. É o corpo que adoece e não o gênero! Até que ponto a inauguração de um Centro de Referência para Travestis e Transexuais é exatamente reforçar um processo discriminatório na contra mão de todos os princípios que regem o SUS? Discriminação médica deve ser tratada no campo da ética e em nome dos direitos humanos, talvez estejamos criando uma das piores atrocidades, legitimando a discriminação dentro de um sistema que deveria ser para todos.
Apesar das dificuldades que só se agravaram pelos equívocos que foram necessários ao “crescimento” do Movimento, é impossível subestimar processos históricos, mesmo que a exemplo do Movimento Feminista que demorou décadas para o reconhecimento da importância que hoje as mulheres usufruem, o Movimento de Travestis e Transsexuais, renovado com a inserção das novas lideranças, poderá ser avaliado no futuro, oxalá, pelas inumeráveis contribuições para a transformação ética da sociedade a que pertence.
Com relação ao Projeto Transpondo Barreiras, foi um diferenciador em termos de financiamento vinculado à área da saúde, na medida em que vislumbrou possibilidades criativas de mudanças. A possibilidade de coordenar uma das regiões permitiu sugerir incrementos adotados nacionalmente, priorizando o vínculo das executoras com o ensino formal, a interação com outros setores que não a saúde (Serviços Sociais e Educação), além de propiciar a interlocução das executoras com os gerentes dos serviços de saúde, tendo como princípio posturas éticas que foram trabalhadas na pauta do respeito e civilidade que exigem uma boa articulação. O respeito que se exige não pode ser diferenciado do respeito que se oferece.
O Projeto permitiu – ao menos na Região Sul – que as executoras redimensionassem a prática de advocacy a partir de um intenso confronto pessoal dos seus medos, seus limites, suas necessidades, seus preconceitos, sua acomodação, etc. Uma oportunidade de se desvencilharem da condição de vítima e equilibrarem direitos e deveres dentro da responsabilidade de ação que a elas competiram realizar. Uma diferença que sem dúvida poderá refletir nos caminhos do Movimento na direção de grandes avanços.
[1] Kelly Vieira – Coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos de Santa Catarina, Coordenadora da ADEDH – Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade, Conselheira Municipal de Políticas para Mulheres.