O reformismo e os sonhos do futuro. Por Jair de Souza.

Por Jair de Souza.

Nos tempos atuais, as forças que se consideram de esquerda estão enfrentando grandes dificuldades de cunho existencial. Uma das principais está relacionada com a formulação de um programa político que oriente sua luta no rumo da edificação da nova sociedade almejada.

Em função da forte influência europeia à qual os povos da periferia do capitalismo ainda estão submetidos, são as linhas de atuação política características do campo majoritário da esquerda daquele continente as que também vêm predominando no Brasil e na maioria dos países do chamado Sul Global. Portanto, por aqui, o modelo que tem servido como protótipo é o que vem sendo protagonizado pelos partidos vinculados com a orientação hegemonizada pela social-democracia europeia há pelo menos um século.

Na Europa, um dos pontos mais relevantes do comportamento prático e teórico desta corrente política surgida a partir dos movimentos operários vem sendo seu absoluto abandono de quaisquer outras formas de disputa pelo poder fora dos marcos da democracia burguesa liberal. E ao dizer disputa pelo poder, estamos, na verdade, forçando muito a barra, já que seria muito mais realístico dizer que se trata meramente de uma busca para chegar ao governo, uma vez que as estruturas de poder real não se veem ameaçadas.

Portanto, tendo por prioridade um caminho a ser trilhado exclusivamente através do voto dentro do sistema do capitalismo liberal, os partidos social-democratas europeus assumiram como sua mais relevante tarefa o trabalho de auscultar o estado de ânimo, as angústias e os desejos que permeiam as massas de potenciais eleitores e, a partir das aferições obtidas, buscar cativá-las com propostas que vão ao encontro de suas aspirações do momento.

Em vista disto, em lugar de ter como meta central a educação e organização das massas populares com vistas à transformação das estruturas que dão sustentação ao sistema capitalista vigente, o objetivo maior passou a ser o de dedicar-se a encontrar maneiras de fazê-lo funcionar de modo menos desfavorável à maioria da população. Em outras palavras, já não se propõe substituir o sistema capitalista por outro de outra índole, senão que apenas adaptá-lo para que funcione sem grandes atritos.

Em consequência da dependência ideológica que boa parte da esquerda brasileira tem em relação a essa social-democracia europeia, a situação no Brasil não difere muito do panorama imperante nos países da Europa Ocidental. Para avaliar se o que acabo de mencionar faz sentido, é importante analisar a evolução comportamental e teórica da mais expressiva agremiação do campo da esquerda de nosso país, ou seja, o PT.

Como sabemos, o PT surgiu a partir de uma confluência de militantes sindicais dispostos a lutar pela conquista de direitos para as maiorias trabalhadoras, as quais vinham sendo espoliadas à ultrança com base na política totalmente voltada às classes dominantes defendida e imposta pelo regime militar que tinha usurpado o governo da nação em 1964, e ativistas políticos provenientes de várias ramificações socialistas que não se conformavam com a linha de moderação que caracterizava certos grupos da esquerda naquele período, como o PCB, por exemplo.

Por isso, o PT despontou desde seu nascimento como um partido político determinado a substituir o sistema capitalista por outro de cunho socialista, ou seja, ele surgiu e ganhou expressão junto a nossa população como uma agremiação netamente antissistema e a favor do socialismo. Foi com essa imagem que o PT se formou e se expandiu, ganhando o coração e a mente de uma parcela muito expressiva de nossa população, inclusive e principalmente, daqueles que sonhavam com a transformação de nossa sociedade de modo a erradicar da mesma o capitalismo.

No entanto, com a chegada de Lula ao governo em 2003, suas perspectivas de realizar mudanças estruturais na sociedade foram sendo abandonadas. É verdade que muito se fez para melhorar as condições de vida das maiorias populares. Mas, por outro lado, o ideal de substituir o atual sistema capitalista pelo socialismo, desde então, nunca mais, ou quase nunca, voltou a ser citado, nem por Lula nem por seus mais próximos colaboradores de governo

Com respeito à solidariedade com os povos que se enfrentam com o imperialismo, o atual posicionamento de Lula e de vários de seus ministros mostra-se ainda mais distante dos propósitos iniciais que eram característicos do PT. Tanto assim que seu atual governo tem se confrontado obstinadamente com aqueles governantes dos países latino-americanos que mais sofrem e resistem às agressões do imperialismo estadunidense. Dentre estes, estão a Venezuela e a Nicarágua. Nossa diplomacia de agora parece estar bem mais sintonizada com as diretrizes de Biden, Kamala Harris e o Partido Democrata dos EUA do que com os antigos sonhos defendidos por Fidel Castro, Che Guevara e Hugo Chávez de uma América Latina popular, livre e soberana.

Evidentemente, é muito mais fácil falar em luta pelo socialismo do que travá-la na prática. As circunstâncias prevalecentes no atual terceiro governo de Lula são ainda muito mais precárias do que as que marcaram seus governos anteriores. Seu leque de apoio parlamentar é hoje muito menos robusto do que era. Não obstante, não se trata de defender o lema de que é tudo ou nada. Sabemos bem, que na vida concreta de massas trabalhadoras tão exploradas, até um ganho que nos parece pouco pode, na verdade, significar bastante.

O grande desafio colocado é saber como conciliar as batalhas pelas pequenas conquistas efetivas do dia a dia com a luta pelo mundo que sonhamos alcançar. E a tristeza nos acomete quando nos damos conta de que, para muitos, este sonho já deixou de existir.

E quando a esquerda deixa de sonhar com a construção de uma nova sociedade sedimentada em bases igualitárias, podemos dizer que o sonho dos capitalistas se materializou.

Assim, a questão não é a de definir se estamos ou não em condições de construir o socialismo no momento. O que me parece preocupante é o próprio abandono desta perspectiva. E é isso o que o comportamento de Lula e de vários nomes importantes vinculados ao PT parece estar sinalizando há algum tempo.

Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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