O racismo nas prisões por reconhecimento facial

De motoboy a cientista, proliferam-se casos de prisões “por engano”, baseadas em fotos 3×4 ou descrições genéricas. Vítimas quase sempre são negras. No RJ, foram 58 casos em 2020. Em breve, Inteligência Artificial aprofundará injustiças

Por Hellen Guimarães, na Piauí

Na manhã do último dia 8, o motorista de aplicativo e montador de móveis Jeferson Pereira da Silva, de 29 anos, foi chamado para receber um valor remanescente de um contrato de trabalho rescindido em 2015. O rapaz foi até o antigo emprego, em um shopping em Del Castilho, na Zona Norte do Rio, para acertar as contas. Chegando ao local, encontrou apenas duas viaturas e policiais civis que lhe deram voz de prisão. O jovem fora reconhecido como autor de um roubo por meio de uma foto 3×4 de quinze anos atrás. Passou seis dias preso por um crime que não cometeu e, ao conseguir um habeas corpus, um erro de digitação ainda atrasou sua soltura. “Eu ainda não sou inocente. Todo mês eu vou ter de voltar aqui, nesse inferno”, desabafou à TV Globo ao sair da cadeia no último dia 13.

Dois dias depois, foi a vez de o mototaxista Alexandre dos Reis Pereira Camargo, de 23 anos, se livrar de uma prisão preventiva indevida. A injustiça se deu da mesma forma: Alexandre foi reconhecido por foto como um dos traficantes que trocou tiros com policiais no Morro da Providência, no Centro, a 60 km de onde mora, em Santa Cruz, na Zona Oeste. A foto 3×4, de quando ele tinha 12 anos, veio da base do Detran, pois constava em sua antiga carteira de identidade. Não se sabe como passou a integrar os registros de suspeitos da Polícia Civil. Preso em 10 de agosto, o rapaz passou 37 dias na cadeia.

Não foram as primeiras vezes em que o reconhecimento por foto resultou em injustiça. No Rio, a sensação é de que todo dia há um caso isolado diferente. A classe social até pode variar, mas as vítimas quase sempre são homens negros, sem passagem anterior pelo sistema prisional, que não fazem ideia de como suas fotografias foram parar no álbum de suspeitos da Polícia Civil. Na manhã do dia 17 de agosto, o cientista de dados Raoni Lázaro Rocha Barbosa, de 34 anos, acordou com o toque na campainha às 6 horas da manhã. Eram policiais civis da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), que o algemaram e o levaram sem explicar a razão. Como o processo corria em segredo de justiça, Raoni e seus advogados só foram descobrir o motivo da prisão doze dias depois. O rapaz fora confundido com Raoni Ferreira dos Santos, o Gago, acusado de integrar uma milícia de Duque de Caxias, onde o cientista de dados jamais morou, a partir do reconhecimento por uma foto que não era dele, mas do suspeito.

O pesadelo durou exatos 24 dias: Raoni só foi solto no dia 9 de setembro, menos de uma semana antes do fim do período de prisão preventiva (trinta dias). Nova confusão das autoridades fez um segundo mandado de prisão ser expedido cinco dias após a soltura, dessa vez com o nome do miliciano, mas ainda com o endereço do cientista de dados. “Nem dormi em casa com medo de ser levado por engano novamente”, contou, num diário elaborado para a piauí.

Erros no reconhecimento por foto têm acontecido em vários estados brasileiros, mas levantamentos recentes do Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege) mostram que o Rio é o epicentro desse tipo de injustiça. Um deles, publicado em setembro do ano passado, mapeou 58 erros de reconhecimento fotográfico de junho de 2019 a março de 2020. Todos os casos ocorreram no Rio de Janeiro e 80% dos suspeitos cujas informações constavam no inquérito eram negros. Em 86% das ocorrências, houve o decreto de prisão preventiva, infligindo às vítimas períodos de privação de liberdade que variaram de cinco dias a três anos. Outro relatório do órgão, publicado em fevereiro deste ano, contou com informações de dez estados diferentes. Mesmo assim, o Rio liderou com folga, respondendo por 46% dos casos.

No ano passado, em pouco mais de um mês, outros três rapazes negros foram vítimas do mesmo equívoco no Rio. No dia 4 de setembro, o violoncelista Luiz Carlos Justino saía de uma apresentação musical nas barcas de Niterói quando foi conduzido por policiais à delegacia sob a justificativa de estar sem documento. Chegando lá, descobriu que existia um mandado de prisão contra ele por assalto à mão armada. A vítima do crime o reconheceu por foto. No dia, porém, o músico estava se apresentando a 10 km do local do roubo. Passou cinco dias na cadeia.

Em 6 de agosto daquele ano, Danillo Félix Vicente de Oliveira foi preso pelo mesmo delito. As fotos utilizadas para o reconhecimento eram antigas e foram retiradas de sua rede social. A vítima do roubo, que descreveu na delegacia um suspeito “pardo de bigode fino”, reconheceu Danillo como autor do crime com base nas imagens. O rapaz, entretanto, tinha cabelo longo, dreads e cavanhaque quando o roubo ocorreu. Ele só foi solto após 55 dias de cárcere. Já o produtor cultural Ângelo Gustavo Pereira Nobre, o Gugu, enfrentou prisão indevida ainda mais longa: 363 dias. Preso em 2 de setembro de 2020, ele chegou a dividir cela com Justino. Gugu foi acusado de roubar um carro na Zona Sul do Rio. Na época do crime, porém, ele se recuperava de uma invasiva cirurgia nos pulmões. Artistas negros brasileiros chegaram a se reunir para denunciar seu caso e pedir sua soltura. Ele foi reconhecido pela vítima do roubo a partir de uma foto tirada de seu Facebook.

Procurada, a Polícia Civil do Rio de Janeiro argumentou que o caso de Raoni foi o único erro de reconhecimento fotográfico cometido na atual gestão. Quanto às prisões de Jeferson e Alexandre, o órgão considera que, embora tenham sido presos em setembro e agosto deste ano, a investigação e o reconhecimento fotográfico que resultaram nas prisões ocorreram na administração anterior. O atual secretário, Allan Turnowski, assumiu o cargo em meados de setembro do ano passado.

“A atual gestão recomendou que os delegados não usem apenas o reconhecimento fotográfico como única prova em inquéritos policiais para pedir a prisão de suspeitos. Tal orientação vem sendo adotada, possuindo uma única ocorrência em análise. Outros casos noticiados ocorreram em gestões passadas. Quanto a Raoni Lázaro Rocha Barbosa, a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco) instaurou uma sindicância interna. Após nova análise do caso, testemunhas foram novamente intimadas, desfizeram o reconhecimento e a própria delegada responsável pelo caso pediu à Justiça a revogação da prisão, tendo em vista novos elementos apresentados durante a investigação”, afirmou a instituição.

O cientista político Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), lembra que o reconhecimento por foto é um expediente muito antigo, utilizado principalmente nas polícias do Rio. O procedimento remonta a um passado muito anterior, quando as autoridades mantinham registros fotográficos de escravos presos, procurados, acusados de vadiagem. “Há uma linha de continuidade muito clara entre aquele tipo de classificação fotográfica ocorrida na época da escravidão com o que a gente vê hoje. Se olharmos esses álbuns que vemos nas delegacias, veremos exatamente quem são as pessoas que estão lá. Por isso mesmo é tão difícil combater. São questões estruturais que precisam de respostas à altura e, até o momento, não houve isso”, explicou Nunes.

Em sua avaliação, não há como discutir o reconhecimento fotográfico utilizado hoje nas delegacias brasileiras sem falar de racismo. “A história da escravidão é baseada também na produção de imagens para controle de população negra. A polícia hoje continua tendo como principal ator a ser perseguido, a ser aprisionado, a ser revistado, a ser morto, os mesmos que na época da escravidão: jovens negros. Não mudou muita coisa.”

Nunes integra o grupo de trabalho sobre reconhecimento facial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criado para debater esses problemas e regulamentar essa prática. Ele ressalta que há dois tipos de reconhecimento: o fotográfico, feito por pessoas durante uma investigação, e o facial, por algoritmo. O cientista político rechaça, porém, a ideia de que a tecnologia possa conferir neutralidade ao processo. “Algoritmos não são produtos do nada, não se constroem no vácuo. São produzidos numa sociedade e refletem essa sociedade, são embutidos dos preconceitos e questões dessa sociedade, como o racismo. É inevitável que eles reproduzam o racismo, uma vez que não resolvemos esse problema na sociedade.”

Para Nunes, soluções apenas tecnológicas, como mudanças no parâmetro dos algoritmos, não resolvem o problema. “É o que chamamos de solucionismo, um band-aid numa hemorragia. A gente precisa focar no racismo, entender como ele opera para verificar exatamente quais são os passos anteriores para discutir questões tecnológicas”, defende. Os esforços de regulamentação dessas práticas, no entanto, ainda são incipientes, e Nunes lista como exemplo medidas iniciais no Legislativo na tentativa de banir o reconhecimento facial por algoritmos utilizados pelas polícias brasileiras.

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