Por Pedro Borges.
Maria das Graças, 47 anos, moradora da comunidade quilombola Toca Santa Cruz, teve a guarda das duas filhas suspensa, ambas menores de 6 anos de idade, por conta de ação do Ministério Público de Santa Catarina. De acordo com o poder judiciário, a mãe não tem condições de cuidar das crianças.
Segundo o Movimento Negro Unificado de Santa Catarina, MNU-SC, entre as inúmeras alegações para o envio das duas meninas ao abrigo Casa Lar Chico Xavier, no município de Biguaçu, está a de que Maria das Graças “é descendente de escravos, sendo que a sua cultura não primava pela qualidade de vida, era inerte em relação aos cuidados básicos de saúde, higiene e alimentação”.
Maria das Lurdes, professora aposentada e coordenadora do MNU-SC, considera essa colocação a prova do racismo existente no judiciário brasileiro. “O que podemos esperar de uma sociedade que tem um sistema jurídico que divide cidadãos de direitos pela cor de sua pele. O que esperar de um Judiciário que faz tal afirmação?”.
Em meio à argumentação sobre o caso, a promotora questionou a não demarcação oficial do território da Toca Santa Cruz, como forma de deslegitimar a identidade quilombola do grupo. Depois da apresentação do documento da Fundação Cultural Palmares e do parecer do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, INCRA, que comprova a regular condição das terras, a promotora rebateu com a afirmação de que Maria das Graças não era quilombola, “porque não se comportava como tal”.
Frente a determinada colocação, Maria das Lurdes explica qual foi a reação do MNU. “Quando o Tribunal estadual nega esta competência, mesmo com o parecer do INCRA reafirmando a identidade Quilombola da mãe, isto nos deixa muito receosos”.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, quando uma criança quilombola sai da guarda dos pais, ela deve ficar com outra família que pertença à mesma comunidade, para que mantenha os seus costumes. A promotoria alega que nenhuma família na Toca Santa Cruz tem condições de ficar com as crianças e que os habitantes da cidade têm medo dos quilombolas.
A coordenadora do MNU afirma que a comunidade sofre de uma exclusão total do governo no que fiz respeito às políticas públicas e crítica a postura do judiciário de deslegitimar a possibilidade das famílias quilombolas cuidarem das crianças. “Vivem numa relação de trabalho escravo. As mulheres trabalham como diaristas por R$ 50,00, os homens trabalham 14h ou 12h por salários sempre abaixo do mínimo. Para o Ministério Público a única possibilidade de vida digna para as filhas de Maria das Graças era serem adotadas pelas famílias brancas. Pelo prefeito e uma vereadora. Os únicos foram consultados. Dizem no processo que o pai não foi consultado porque é alcoólatra. No entanto não existe nenhum laudo que ateste o alcoolismo do pai”.
A defesa nega também a incapacidade da mãe de cuidar das suas filhas. Elas estavam matriculadas em uma creche e no ensino básico, onde tinham bom desempenho escolar, segundo a professora. Elas também frequentavam aulas de balé, compareciam ao posto de saúde com regularidade e estão com as vacinas em dia. No abrigo, a frequência escolar das jovens é menor do que antes, quando estavam sob os cuidados da mãe.
Para fundamentar a sua ação, o Ministério Público promoveu laudos de médicos psiquiatras e de assistentes sociais para tentar comprovar a incapacidade da mãe de manter a guarda das crianças. O MNU afirma que, de acordo com funcionários da Prefeitura, foi pedido a um médico da rede um laudo pronto que atestasse a não possibilidade de Maria das Graças cuidar das suas filhas.
Comunidade está envolvida com o caso
Sem o convite para os advogados de defesa da mãe, um médico psiquiatra do município de Tubarão-SC, atestou que a Maria das Graças tinha retardo mental leve e déficit intelectual leve e por isso não poderia gerir a família. A equipe de advogados encaminhou a avaliação para um especialista do INSS, que classificou a mãe com apenas déficit intelectual leve. Maria das Graças é analfabeta. Maria das Lurdes pensa que “esta afirmação esta diretamente relacionada ao racismo, pois julgam deficiência mental o fato de ela ser analfabeta. Em todo processo o racismo está presente quando acusam e culpam Maria das Graças pela ausência e abandono do poder publico na comunidade trazendo consequências de geração em geração”.
Os demais estudos sociais produzidos responsabilizaram o poder público. O primeiro apontou que seria dever do Estado amparar a família. A segunda observação indica que erraram na análise e que à Maria das Graças não foi dada a possibilidade de defesa.
Em 2014, dois policiais foram à casa de Maria das Graças para levar as crianças. Os policiais armados alegaram à mãe que levariam as duas filhas ao médico. A mentira foi contada para que não houvesse resistência. Desde então, as jovens encontram dificuldades para ter contato com os pais ou qualquer membro da comunidade.
O processo agora está em fase de recurso e a juíza tem até o dia 19 de setembro para definir o futuro da família. A advogada Dr. Patrícia Soares Martins de Oliveira e a secretaria geral da Comissão da Igualdade Racial da OAB entraram com recurso para a anulação da medida judicial. Entre as inúmeras alegações, destaque para a ausência de antropólogo no caso, ausência de intimação para a realização das perícias psiquiatras, transferência de menores para local e família não pertencentes à mesma comunidade, além da negativa da existência da Toca Santa Cruz e da identidade de Maria das Graças enquanto quilombola.
Fonte: Jornal GGN