Na última semana, embasados por registros fotográficos chocantes, o bombardeio da imprensa e o coliseu das redes sociais beberam o sangue de alguma atividade obscura que estava em curso no Pólo Universitário da UFF
Por Isadora Machado, do Mídia Ninja.
Fomos a Rio das Ostras conhecer a história que não saiu na velha mídia sobre o caso “Xereca Satânik”. Na última semana, embasados por registros fotográficos chocantes, o bombardeio da imprensa e o coliseu das redes sociais beberam o sangue de alguma atividade obscura que estava em curso no Pólo Universitário da UFF. Uma mulher havia se submetido a uma espécie de ritual satânico durante uma festa no campus, como manda o figurino: fogo, nudez, sangue, um aparente crânio humano e órgãos genitais dilacerados.
O boca a boca contava que as fotos foram encaminhadas por estudantes – que não participaram do evento – a um jornalista que não apurou os fatos. Em pouco tempo surgiram as inúmeras manchetes e estava conduzido o linchamento & julgamento moral-midiático-virtual. Os réus já estavam condenados. Mas existiu mesmo um crime?
Estudando o caso, percebemos que esqueceram de contar que o 28 de maio foi um dia de atividades ligadas ao grupo de pesquisas CNPq “Cultura e Cidade Contemporânea: arte, política cultural e resistência”, onde se deu o segundo “Seminário de Investigação e Orientação Estética”, que teve como recorte o par “Corpo e Resistência”; conduzido por professores e alunos do curso de graduação em Produção Cultural. A atividade é fruto de um acúmulo de trabalho de pesquisa e extensão, após debates em sala de aula e apresentação de trabalhos que investigavam performances. A proposta era levar práticas autônomas contemporâneas para a universidade, situada em território periférico do circuito artístico brasileiro. Somar a prática ao objeto de estudo já exaustivamente abordado em teoria, e assim, lidar com um sistema de arte às avessas – circuitos alternativos aos curadores, museus, galerias, políticas públicas. O objetivo era aflorar as possibilidades de resistência e autonomia.
“Xerecas Satâniks” era uma confraternização de livre circulação, aberta aos alunos e população. Começou por volta das 22h na “Amendoeira” localizada ao lado do prédio Multiuso, ainda não inaugurado por falta de esgoto. O mesmo local há quatro meses vem sendo ocupado pelos estudantes com atividades culturais gratuitas, entre elas o projeto Lá-Tá-Rolando, saraus, festa junina, oficinas de lambe-lambe e de teatro, diálogos culturais e cineclube. Por volta da 1h a performance teve início.
A artista convidada Raíssa Vitral (Coletivo Coiote) apresentava o corpo extraordinário como suporte para guerrilha memética. Em cima de uma mesa com as pernas abertas, inseria uma bandeira do Brasil em sua vagina. Auxiliada por duas outras mulheres, fez pequenas costuras unindo as duas partes da xereca, a bandeira puxada para fora, a performer rompendo as suturas enquanto o sangue escorria. Das cerca de 50 pessoas que participavam da atividade, quem não gostou se retirou, a performance encerrou seu ciclo no efêmero do ato e a confraternização seguiu.
Porque no museu é arte e na rua é crime?
A expressão e a experiência estético-política de Rio das Ostras extrapolou as questões da violência contra a mulher trazidas na ação poética. A performance choca porque é potente e tira da zona de conforto ao apresentar pelo profano das bocetas a arte-vida, arte-política, que vem para refletir a maneira como vivemos e burlar os macropoderes da clausura dos indivíduos em seus próprios corpos. A intervenção acendeu alguns holofotes do debate sobre censura à liberdade de expressão na universidade pública, revelando o contrário do esperado dessas instituições: espaços de experimentação, debate e reflexão livre e transversal.
Em comunicado, a Reitoria afirmou que não pactua com atividades que “desvirtuando de sua essência institucional, extrapole os limites do razoável, atentando aos valores da liberdade e igualdade, ou ofendendo a dignidade da pessoa humana”. A UFF instaurou sindicância com duração de 30 dias para elaboração de um relatório e averiguação, e a Polícia Federal iniciou uma investigação.
“Nós não temos biblioteca, isso pra mim é muito mais chocante que a menina costurando a xereca”, pontuou um dos estudantes presentes ao debate sobre o ocorrido realizado ontem (3) no campus. Prédio sem esgoto, aula em contêiner e falta de internet pareceram revoltar mais os discentes de Produção Cultural em Rio das Ostras que a performance satanizada. O ambiente é de solidariedade à criminalização sofrida pelos estudantes e professores realizadores do seminário.
O verdadeiro sofrimento do pólo universitário na Região dos Lagos é causado por questões estruturais. Ontem pela manhã os servidores da unidade realizaram um piquete fechando o campus até as 10h, em protesto às condições de trabalho, carga horária e por correções salariais.
Na fronteira de um ataque à autonomia universitária, o debate feito até aqui tira o foco das necessidades de uma valorização da educação. Especulações sobre o que é ou não é arte ou julgamentos sobre o que a moral e os bons costumes suportam ainda repercutem muito mais do que as vozes e corpos que se movimentam por mudanças. O aprendizado de hoje foi o óbvio. Leia antes de compartilhar.