O que vem a ser independência do Banco Central, na prática

Por José Álvaro Cardoso.

A oligarquia financeira é muito poderosa em todo o mundo todo. Para defender seus interesses, promove guerras, golpes de Estado, e conspirações de todos os tipos. Muitas vezes se costuma classificar uma análise mais “fora do normal” como se fosse uma “teoria da conspiração”. Mas o fato é as conspirações dominam o mundo da política e da economia, desde sempre. Podemos ter uma ideia do poder do sistema financeiro, nos EUA, a maior economia do globo. por exemplo, a dívida nacional bruta ultrapassou US$ 31 trilhões, equivalente a 135% do PIB (US$ 23,32 em 2021). Desde o ano passado o valor da dívida bruta se aproximou do teto estabelecido pelo Congresso (cerca de US$ 31,4 trilhões), o que quase levou a um impasse institucional, na medida em que essa é uma limitação legal para a concessão de empréstimos públicos. O acordo no Congresso norte-americano, aumentando o limite da dívida nos EUA foi assinado apenas em junho último, levando ao risco de colapso das contas públicas, sem o país poder honrar seus compromissos.

Essa dominação da burguesia financeira, é mais ou menos assim no mundo todo. Porém, no Brasil, o poder dessa oligarquia é um caso à parte, na medida em que os credores da dívida se apropriam de cerca de 50% do orçamento federal, através do sistema de parasitagem da dívida pública. É um caso específico no mundo, cuja solução, por si só, seria uma melhora substancial da situação.

O Dieese divulgou recentemente um estudo, intitulado a “Importância dos Bancos Públicos” que mostra que, a partir de 2016, com o golpe, a atuação dos bancos públicos mudou, os governos golpistas implementaram uma política de esvaziamento dos bancos públicos. Não por acaso, sucederam-se os ataques aos bancos públicos e aos instrumentos de controle do sistema privado: Lei de Responsabilidade das Estatais (Lei 13.303/2016); alteração metodológica no cálculo da taxa de juros de longo prazo – da TJLP para a TLP – que afetou a concessão do crédito no BNDES; liquidação antecipada de dívidas do BNDES; venda de ativos da Caixa; além de outras ações que conduziram a um esvaziamento dessas instituições e também de mudança do papel do Estado.

Os governos golpistas de Temer e Bolsonaro queriam privatizar completamente o Banco do Brasil e a Caixa Econômica. Conseguiram entregar algumas unidades dessas duas instituições, não privatizaram totalmente porque não deu tempo. O estudo do Dieese revela, no entanto, que, apesar das tentativas de esvaziamento dos bancos públicos, na hora da crise econômica, ou sanitária, quem disponibilizou e disponibiliza crédito para a sociedade, especialmente para os setores mais frágeis, tem sido os bancos públicos.

A capacidade de apropriação de riqueza por parte do sistema financeiro, que coloca à disposição, todo ano, 5% ou mais do PIB brasileiro, para uma plutocracia financeira constituída de algumas centenas de milhares de pessoas, garante um nível de poder a esse segmento, que possibilita controlar de forma sistemática os processos políticos e os próprios governos que se revezam no executivo federal. Tirar da caneta do presidente da República eleito a gestão político-técnica do Banco Central significou destinar ainda um maior poderio, para essa oligarquia financeira mandar e desmandar no país. O Banco Central é instrumento chave para o governo estabelecer políticas cruciais para a nação, como a estabilidade e da moeda, quantidade de meio circulante, controle da inflação, fiscalização dos bancos, e assim por diante.

Com a independência do BC, o sistema financeiro, e todos os seus tentáculos, tentou tornar os instrumentos de controle público do sistema financeiro, um ambiente “asséptico” à contaminação do voto popular. Isso é muito grave considerando a realidade brasileira, ou seja, de enorme crise econômica e política, e de no mínimo, seis anos de baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) (desempenho do produto que se tem registro nas contas nacionais).

O Brasil, que transfere todo ano, 5% ou mais do PIB para um grupo de autênticos parasitas, não tem dinheiro público para retomar o desenvolvimento da economia. O país mantém há décadas o maior juro real (ou seja, taxa de juros descontada da inflação prevista para os próximos 12 meses) do mundo. Quando cai um pouco no ranking fica sempre entre os primeiros nessa lista maldita. O fato da taxa básica de juros do Brasil estar muito acima da média mundial (no qual 90 países tem taxas de juros negativas), não tem nada de “opção técnica”. É antes de tudo, um método de extorsão de toda uma população, em benefício dos bancos.

O Brasil é um dos países com um perfil de distribuição de renda mais concentrado do mundo, especialmente considerando o seu nível de industrialização. O contexto de concentração da riqueza e da renda, no Brasil deveria ser uma balizador do debate sobre o papel político e econômico do Banco Central. Entre os defensores do banco central independente, predomina a concepção de que o banco central deve se preocupar exclusivamente com o controle da inflação, fechando os olhos para crescimento da economia e o emprego.

Do ponto de vista técnico, a independência do banco é uma posição difícil de sustentar. É muito mais fácil defender a posição contrária. O problema é que a grande mídia veicula apenas as posições de interesse do capital, especialmente em temas cruciais como esse do banco central, que é central para a dominação econômica. Ademais, a temática é árida, de difícil compreensão para a população em geral, que precisa se concentrar em sua sobrevivência.

Se os diretores do BC não têm subordinação hierárquica, de caráter público, sua atuação fica sem mecanismos de controle. A medida correta neste grave momento do país seria justamente a ação oposta, ou seja, aumentar o controle e a transparência do banco, colocando as suas políticas ao serviço do país. A independência do BC, considerando como funcionam no Brasil essas estruturas burocráticas, na prática garante o contro do Banco Central aos ricos, através de seus prepostos.

Antes da chegada da lei da independência o banco central já tinha total autonomia operacional no Brasil, ou seja, ele operava a política definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Tinha grande liberdade para agir dentro de determinados marcos e atingir o seu primeiro objetivo legal, que é o de combater a inflação. Por exemplo, Henrique Meirelles, típico representante da burguesia, e presidente do BC entre 2003 e 2011, gozava de total liberdade para fazer suas políticas no Banco, que inclusive, de certa forma colidiam com a perspectiva mais desenvolvimentista de outras áreas do governo. Era uma política claramente antinacional, contra o desenvolvimento da economia e operada exclusivamente em benefício dos rentistas. Henrique Meirelles havia sido recrutado diretamente das fileiras do Banco de Boston, um grande conglomerado financeiro internacional.

Apesar da retórica dos liberais de que o banco central deveria cuidar apenas da estabilidade de preços – utilizando, ademais, uma arma limitada, que é a taxa de juros -, não há dúvidas que a instituição deveria também contribuir com políticas que possibilitem o crescimento da economia e do emprego no país. O Banco Central não pode desenvolver política monetária que desconsidere a estratégia mais geral do governo, de crescimento da economia. A desculpa de mandato único do Banco Central (o controle da inflação) explica em parte o Brasil praticar durante décadas as taxas de juros mais elevadas do mundo, interesse visceral e direto dos bancos que embolsam fortunas com essa política.

Há todo um esforço da grande mídia e dos conservadores, no sentido de apresentar discutíveis razões técnicas, para algo que é, fundamentalmente, de interesse dos banqueiros e seus apaniguados. O banco central sempre foi dominado pelo capital financeiro, guardadas as devidas especificidades de cada período histórico. É evidente, inclusive, que com a onda neoliberal, que alcançou o Brasil ainda no final da década de 1980, essa dominação amplificou, fato comprovado até pela citada presença de Meirelles nos governos do Partido dos Trabalhadores.

Convém recordar que, com o golpe, assumiu como novo presidente do Banco Central o economista-chefe e sócio do Itaú Unibanco, Ilan Goldfajn, saído diretamente do cargo de economista-chefe do Itaú Unibanco, maior banco privado brasileiro. Formalmente Goldfajn se desligou do banco, medida totalmente proforma, visto toda a sua formação política e acadêmica, e sua ideologia, está diretamente ligada ao pensamento conservador e aos bancos.

José Álvaro Cardoso é coordenador técnico do DIEESE/SC e colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

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