Eugenia é um termo que veio do grego e significa ‘bem nascido’. “A eugenia surgiu para validar a segregação hierárquica”, explica ao VIX a pesquisadora Pietra Diwan, autora do livro “Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo”.
Como a eugenia nasceu
A ideia foi disseminada por Francis Galton, responsável por criar o termo, em 1883. Ele imaginava que o conceito de seleção natural de Charles Darwin – que, por sinal, era seu primo – também se aplicava aos seres humanos.
Seu projeto pretendia comprovar que a capacidade intelectual era hereditária, ou seja, passava de membro para membro da família e, assim, justificar a exclusão dos negros, imigrantes asiáticos e deficientes de todos os tipos.
Para isso, ele analisou a biografia de mais de 9 mil famílias.
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“Galton pretendeu estender as implicações da teoria da seleção natural, indicando que os seus estudos demonstravam que além da cor do olho, feição, altura e demais aspectos fisiológicos, também traços comportamentais, habilidades intelectuais, poéticas e artísticas seriam transmitidas dos pais aos filhos”, descreveu o pesquisador Valdeir del Cont, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O projeto da eugenia foi apresentado ao mundo pela Grã-Bretanha e colocado em prática pela primeira vez nos Estados Unidos.
Movimento de eugenia no Brasil
O Brasil não só ‘exportou’ a ideia como criou um movimento interno de eugenia.
Médicos, engenheiros, jornalistas e muitos nomes considerados a elite intelectual da época no Brasil viram na eugenia a ‘solução’ para o desenvolvimento do país.
Eles buscavam, portanto, respaldo na biogenética (ou seja, nos estudos e resultados de pesquisa de Galton) para excluir negros, imigrantes asiáticos e deficientes de todos os tipos. Assim, apenas os brancos de descendência europeia povoariam o que eles entendiam como ‘nação do futuro’.
Segundo a antropóloga social Lilia Schwarcz, a eugenia oficialmente veio ao país em 1914, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com uma tese orientada por Miguel Couto, que publicou diversos livros sobre educação e saúde pública no país.
Couto via com maus olhos a imigração japonesa e anos mais tarde, em 1934, seria um dos responsáveis por implementar um artigo na Constituição da época que controlava a entrada de imigrantes no Brasil.
Nos primeiros anos do século XX, porém, havia no Rio, então capital brasileira, a ideia de que as epidemias brasileiras eram culpa do negro, recém-liberto com a abolição da escravatura (1889).
Portanto, para parte da elite intelectual da época, a eugenia seria uma forma de ‘higiene social’, tanto que “saneamento, higiene e eugenia estavam muito próximas e confundiam-se dentro do projeto mais geral de ‘progresso’ do país”, conforme assinalou a pesquisadora Maria Eunice Maciel, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Renato Kehl: o pai da eugenia no Brasil
Quando se deparou com a tese orientada por Couto, o médico e sanitarista Renato Kehl (1889-1974), considerado o pai da eugenia no Brasil, achou que a comunidade científica tinha que se esforçar mais.
Ele acreditava que a melhoria racial só seria possível com um amplo projeto que favorecesse o predomínio da raça branca no país.
A professora Maria Maciel enumera algumas das ideias de Kehl: “segregação de deficientes, esterilização dos ‘anormais e criminosos’, regulamentação do casamento com exame pré-nupcial obrigatório, educação eugênica obrigatória nas escolas, testes mentais em crianças de 8 a 14 anos, regulamentação de ‘filhos ilegítimos’ e exames que assegurassem o divórcio, caso comprovado ‘defeitos hereditários’ em uma família”.
Kehl conseguiu trazer diversas autoridades médicas para levar o projeto de eugenia adiante: um deles é Gonçalves Vianna, da então Liga de Higiene Mental do Rio Grande do Sul. Outra figura bem conhecida era o radialista Roquette-Pinto, que liderou o Congresso de Eugenia no Rio, em 1929.
Nesse congresso, que reuniu dezenas de médicos e biólogos favoráveis à ideia de eugenia, eles classificaram pessoas com deficiência, como cegos, surdo-mudos e pessoas com deficiência mental, por exemplo, de ‘tarados’ – ou seja, um mal a ser combatido para que a ‘raça superior’ prevalecesse.
Mulheres eram tidas como ‘procriadoras’ e a eugenia, para eles, era uma forma de “advertência do perigo que ameaça a raça com o feminismo”, como assinalou Maciel.
Na mesma época, chegou a ser organizado um “Concurso de Eugenia” que serviria para premiar as 3 crianças que “mais se aproximassem do tipo eugênico ideal”, conforme anunciava o cartaz.
As ‘vencedoras’ do concurso eram todas garotas, brancas, que foram classificadas como “boas procriadoras”.
Segundo Pietra Diwan, em escala nacional e política a eugenia era um “superprojeto”, porque permitia identificar as características raciais e físicas consideradas ‘ruins’ pelos mais ricos da época e “cortar o mau para desenvolver apenas as boas características em cada pessoa”.
Intelectuais contra e a favor da eugenia
Quem era a favor
Nas décadas de 1920 e 30, o pensamento eugenista cooptou muitos nomes influentes, como Júlio de Mesquita, proprietário do jornal O Estado de S. Paulo; Oliveira Vianna, jurista e sociólogo considerado ‘imortal’ pela Academia Brasileira de Letras; e o fundador da Faculdade de Medicina em São Paulo, Arnaldo Vieira de Carvalho – que dá nome à conhecida “avenida doutor Arnaldo”, no centro da capital paulista.
O renomado autor de “Sítio do Picapau Amarelo”, Monteiro Lobato, não só era bastante próximo de Renato Kehl, como chegou a escrever um livro baseado nas ideias de eugenia.
Publicado em 1926, “O Presidente Negro – O Choque das Raças” falava de um homem negro que assumiria a Casa Branca no ano de 2228 e uniria todos os brancos dos Estados Unidos a ponto de esterilizar e exterminar os negros de seu país.
Pouco depois de lançar o livro, Lobato menciona o amigo em termos que hoje soam assustadores:
“Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. Precisamos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: póda. É como a vinha”.
Não tinham opinião clara
Após a proclamação da República, o Brasil vivia um novo momento. Os negros recém-libertos disputavam mercado de trabalho com imigrantes de diversas partes do mundo (como Japão, Itália, Síria e judeus refugiados, para citar alguns), fazendo com que a unidade brasileira fosse repensada.
Foi nesse contexto, em 1933, que o escritor pernambucano Gilberto Freyre publicou “Casa Grande e Senzala”, livro que revolucionou a antropologia brasileira ao mostrar como a miscigenação tornou-se um traço único do Brasil.
Pietra Diwan afirma, porém, que as ideias de Freyre não se tratavam de um contraponto à eugenia. “É controverso. Na minha visão, ele tenta justificar o preconceito no Brasil através da miscigenação. Ele critica sim a segregação. Mas o perigo da miscigenação nesse contexto é o branqueamento, que se tornou a proposta de alguns: ‘bom, vamos miscigenar porque branqueia e elimina os caracteres ruins da sociedade’”.
Freyre era próximo de Renato Kehl e considerado um dos grandes gênios brasileiros por Monteiro Lobato. Ainda assim, diz Pietra, “Freyre não era do movimento eugenista. Digo que ele é entendedor”.
Nem mesmo os modernistas, que tinham como proposta enaltecer a ‘raiz’ do Brasil no campo da literatura e das artes plásticas, foram totalmente contra a eugenia. “Grande parte dos modernistas seguiu em busca de um país natural, puro, das imagens dos indígenas, mas eles excluem completamente os negros. Eles não contemplam a totalidade da sociedade brasileira naquele momento”, reflete Pietra.
Quem era contra
Um dos maiores opositores ao ideal de eugenia foi o médico sergipano Manoel Bonfim. Em 1905, ele publicou uma obra que irritou a comunidade médica: o livro “A América Latina: males de origem”. Ele chamou a eugenia de “falsa ciência” e expôs o preconceito declarado dos europeus em relação aos latino-americanos.
“O livro é uma analise das causas da miséria e do atraso geral do continente, em que desmascarava o chamado racismo cientifico”, explica o sociólogo Jefferson Medeiros, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “A formulação dada por Bomfim em contraposição ao que era vigente na época sobre o fator das raças serem as causas do subdesenvolvimento leva-o a formular a tese do parasitismo social”.
(Parasitismo social é a ideia de que os países ricos invadem as nações para extrair a riqueza e fazer dos nativos uma classe dominada.)
Eugenia na atualidade
Relatos e provas da violência generalizada devido ao Holocausto promovido pela Alemanha nazista fizeram com que houvesse um “constrangimento internacional em relação à eugenia”, segundo Pietra.
De qualquer forma, esse pensamento persiste, sim, em nossa sociedade. “Se hoje não existe uma eugenia institucionalizada, existe um pensamento eugenista incrustado na mente do brasileiro. Não nos damos conta porque ele é tão naturalizado, que a gente vê sempre como uma piada ou uma justificativa de diferenciar o seu lugar em relação ao outro”, explica a pesquisadora.
Piadas corriqueiras como “segunda-feira é dia de branco” ou “sou pobre, mas sou limpinho” são alguns exemplos de como a eugenia chegou aos nossos tempos.
Pietra atribui a persistência desse discurso aos programas televisivos, ou seja, “a indústria de consumo e a cultura de massa no Brasil”. Mais uma vez, trata-se de uma herança norte-americana. “Essa cultura vem essencialmente dos Estados Unidos, através de Hollywood e dos bens de consumo”, diz a pesquisadora.
“O termo eugenia pode ter desaparecido, mas as perguntas, o pensamento e a preocupação permaneceram”, diz a pesquisadora brasileira, que atualmente trabalha sua tese de doutorado relacionando a eugenia nos Estados Unidos.
Pietra diz que, naquele país, a eugenia é institucionalizada nas relações sociais – algo que se comprova com a clara distinção entre brancos e negros em todas as esferas.