O que foi o massacre de Napalpí, que Argentina julga 100 anos depois

Entre 70 e 80% dos habitantes da chamada Redução Aborígene de Napalpí, na Argentina, foram assassinados no dia 19 de julho de 1924

Por Verónica Smink, BBC News Mundo.

Em 19 de abril, a Argentina deu início a um julgamento sem precedentes no país. Encabeçado por uma juíza federal, o julgamento traz provas e testemunhas. Mas não há acusados, porque todos já morreram.

Trata-se do primeiro “julgamento pela verdade”, um processo penal que julgará uma das maiores chacinas contra povos originários na Argentina, ocorrida há quase um século: o Massacre de Napalpí.

O julgamento foi aconselhado pela Unidade de Direitos Humanos da Promotoria Pública Federal da cidade de Resistência, capital da província do Chaco, no norte da Argentina, e procura definir os fatos por trás da matança de mais de 400 pessoas dos povos originários moqoit (ou mocovi) e qom (ou toba), promovida por agentes do Estado naquele local, em 1924.

A juíza federal de Resistência Zunilda Niremperger ordenou a realização desse processo incomum, ao concluir que “os fatos objeto de investigação exibem características que permitem sua inclusão na categoria de crimes contra a humanidade, cuja imprescritibilidade possibilita sua investigação, apesar do tempo transcorrido”.

A magistrada argumentou ainda que “a busca concreta da verdade é relevante, não apenas em termos de memória coletiva, mas também por poder trazer consequências favoráveis no campo da reparação histórica e simbólica para as comunidades que teriam sido prejudicadas diretamente por esses fatos”.

O Ministério Público Federal da Argentina indicou que este será “um processo dedicado à averiguação da verdade, similar aos promovidos na década de 1990 em diversas jurisdições para investigar os crimes da última ditadura, durante a vigência das leis de Ponto Final e Obediência Devida”, que impediam que os repressores fossem julgados.

O “julgamento pela verdade” começou na Casa das Culturas de Resistência em 19 de abril, data em que se comemora o Dia do Índio – chamado na Argentina de Dia do Aborígene Americano.

O processo inclui audiências no interior da província, onde vivem atualmente os descendentes das vítimas do massacre, e no Centro Cultural da Memória de Buenos Aires, localizado na antiga Escola Mecânica da Marinha (ESMA) – o mais conhecido centro clandestino de detenção durante o último regime militar argentino.

A Secretaria de Direitos Humanos do país destacou que se trata do “primeiro julgamento da história da Argentina que investigará um massacre de povos originários”.

O que aconteceu?

Os registros históricos e a investigação da Promotoria Pública permitiram reconstruir os fatos ocorridos em 19 de julho de 1924, quando centenas de homens, mulheres, crianças e idosos das comunidades nativas americanas moqoit e qom foram assassinados por policiais civis e militares, além de latifundiários da região.

Tudo ocorreu na chamada Redução Aborígene de Napalpí (hoje conhecida como Colônia Aborígene), a cerca de 150 km da cidade de Resistência. As “reduções” eram locais criados pelo Estado para poder concentrar as populações indígenas e explorá-las como mão de obra barata.

As famílias que viviam em Napalpí sobreviviam colhendo algodão em condições análogas à escravidão.

Um grupo de trabalhadores decidiu deflagrar greve para reivindicar a justa retribuição pelo seu trabalho ou a possibilidade de sair do território para trabalhar em outros engenhos. Em resposta, o então governador do Chaco, Fernando Centeno, enviou forças de segurança para reprimi-los.

Cerca de 130 homens cercaram a redução e massacraram seus moradores, que estavam desarmados. Levantamentos de diferentes historiadores reunidos pela Promotoria Pública dão conta que, em 45 minutos, os agentes dispararam mais de cinco mil balas de fuzil contra a população de Napalpí.

Um avião antigo rodeado por pessoas
O avião que participou do massacre de Napalpí, em fotografia do etnólogo alemão Roberto Lehmann-Nitsche
 

A operação também utilizou um avião que, segundo o testemunho de alguns dos descendentes da comunidade, lançou alimentos para atrair aqueles que estavam no morro e poder massacrá-los. O etnólogo alemão Roberto Lehmann-Nitsche – especialista nas comunidades de povos originários da Argentina – tirou uma fotografia desse avião, que foi incluída no processo.

Muitas das vítimas foram enterradas em valas comuns depois de serem mutiladas para transformar partes dos corpos em “troféus” – como testículos, peitos e orelhas.

E o massacre não terminou ali. Os sobreviventes foram perseguidos e “caçados” nos morros. Os feridos foram assassinados a facadas.

Estima-se que, ao todo, mais de 400 pessoas tenham morrido naquele dia – e cerca de 40 crianças que haviam conseguido escapar foram entregues para servir de criados nas localidades próximas, quando não morriam pelo caminho.

Ana Noriega, da Fundação Napalpí, afirmou à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) que 70% a 80% da população da Redução Napalpí foram massacrados. E os que conseguiram sobreviver precisaram esconder-se das autoridades, que tentavam eliminar todos os indícios, para poder negar o ocorrido.

Segundo a versão oficial, noticiada pela imprensa na época, o que aconteceu foi um enfrentamento entre os indígenas que precisou ser sufocado pela polícia. Mas as histórias sobre esse dia, que os sobreviventes contaram aos seus descendentes, tornaram-se uma peça fundamental para que hoje, 98 anos depois, o etnocídio cometido esteja sendo julgado.

Uma senhora idosa dá depoimento para outros homens
Juan Chico (à direita), durante a gravação do testemunho de Rosa Grilo, sobrevivente do massacre de Napalpí

Memória oral

A partir dos relatos da sua avó, o historiador qom Juan Chico começou a pesquisar os fatos e recolheu testemunhos e provas que viriam a ser publicados no seu livro La Voz de la Sangre (“A voz do sangue”, em tradução livre), que permitiu romper o silêncio histórico sobre o ocorrido no princípio do século 20.

O testemunho gravado de Chico – que morreu de covid-19 em 2021, com 42 anos de idade – foi ouvido na abertura das audiências, em 19 de abril.

Foi também exibido o registro audiovisual de dois dos últimos sobreviventes do massacre: os centenários Pedro Balquinta e Rosa Grilo, que prestaram depoimento para os promotores em 2014 e 2018, respectivamente.

“É muito triste para mim, porque mataram meu pai e quase não tenho vontade de recordar, me faz doer o coração”, disse Grilo, a última vítima a prestar seu testemunho, abrindo sua declaração.

Na próxima audiência em 3 de maio, na Casa das Culturas de Machagai (o município argentino onde se localiza Napalpí), serão ouvidas as declarações de descendentes dos sobreviventes do massacre.

Noriega, da Fundação Napalpí (fundada por Chico), salientou que “é a primeira vez que a memória oral dos povos [originários], que é transmitida de geração em geração, terá a mesma legitimidade da palavra dos acadêmicos e especialistas. Isso é muito importante.”

“Este julgamento vai empoderar as pessoas, avalizar sua história, que eles ouviram muitas vezes, mas sempre foi desmentida pelos meios de comunicação e pelo Estado vigente”, afirma ela.

Já a juíza Niremperger destacou na abertura dos trabalhos que o julgamento não busca apenas “aliviar as feridas” e “reparar” os danos do passado. É também uma mensagem para as gerações atuais e futuras.

“Um objetivo é ativar a memória e gerar a consciência coletiva de que essas graves violações aos direitos humanos não devem voltar a ser repetidas”, afirmou a juíza.

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