O que está por trás da truculência da Polícia Militar?

O BdF ouviu especialistas no tema para buscar respostas e saídas diante da crescente letalidade policial no Brasil

Em São Paulo, o aumento da violência policial é acompanhado de perseguição e ameaças às organizações de direitos humanos, denunciam entidades – Agência Brasil

Por Caroline Oliveira.

Há exatos 28 anos, no dia 2 de outubro de 1992, 111 detentos foram assassinados pela Polícia Militar de São Paulo (PMSP) dentro da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru. Nesta sexta-feira (2), também faz 10 meses que nove jovens foram mortos pela mesma polícia, durante um baile funk, em Paraisópolis, zona sul do Município de São Paulo.

As datas, tão distantes uma da outra, mostram que os assassinatos empreendidos pela PMSP não configuram um evento isolado. Denotam, ao contrário, uma política de segurança pública que produz violência e expressiva letalidade policial – padrão este que se repete em outras corporações pelo país.

Apenas em 2018, 6.220 pessoas foram mortas por agentes de segurança civis e militares, o que representa um aumento de aproximadamente 20% em relação ao ano anterior, segundo dados de 2019 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Do total, a polícia que mais mata no Brasil é a carioca: 1.534 pessoas assassinadas. Em seguida, está a do estado de São Paulo, com 851 óbitos. Conforme a série histórica do fórum, a letalidade policial no país vem crescendo constantemente desde 2013. Mas a que se deve o aumento constante da letalidade policial brasileira?

A concepção de um inimigo durante a ditadura militar

Segundo Adilson Paes de Souza, tenente-coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo e doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, há a construção de um inimigo a ser combatido em cima de preconceitos. Enquanto alguns indivíduos são considerados sujeitos de direitos, outros sequer são vistos como cidadãos.

O combate a esse inimigo, explica Souza, caiu nas mãos dos militares durante a ditadura militar, quando os agentes passaram a ser “o escopo de atuação ampliado contra a guerra, os inimigos da nação”. Nesse momento, as polícias incorporaram técnicas de infiltração, sequestro, captura, desaparecimento de opositores, extermínio, técnicas de tortura e interrogatório e montagem das relatórios.

É uma instrumentalização do Estado por uma política de extermínio.

“Eles [policiais] receberam treinamento de forças americanas e francesas. Pelos americanos, inspirados na doutrina da segurança nacional. Pelos franceses, na doutrina da guerra revolucionária.”

Foi em 1969, por exemplo, que se criou o auto de resistência, para registrar as ações dos agentes de segurança que resultaram em mortes, com base nas declarações dos próprios policiais. “É uma instrumentalização do Estado por uma política de extermínio daqueles que são considerados inimigos da nação”, que não mudou com a Constituição Federal de 1988. Em outras palavras, o sistema de segurança pública é o mesmo da ditadura.

Silva afirma que, mantida a concepção do sistema baseado na eliminação de um inimigo, “há a necessidade de continuar combatendo”. “E aí se encaixa o perfil padrão dos suspeitos mortos e presos pelo Estado brasileiro: pretos, pobres, jovens e moradores de periferia. As estatísticas não mentem”, assevera.

Segundo um relatório, de julho de 2020, da Rede de Observatórios da Segurança, negros (pretos e pardos) são 75% dos mortos pela polícia no país.

Desumanização dos aspirantes a policiais

Segundo o tenente-coronel, os aspirantes a policiais são submetidos a “tratamentos rudes, viris, humilhantes, ritos de passagem, calcados na violência”, quando entram nas escolas de polícia, com a finalidade de “desconstruir o ser que havia antes na polícia para construir o militar”, justamente para colocá-lo como “superior a tudo que pode fazer tudo em nome da segurança”.

Os modelos de tratamento têm consequências, como a letalidade policial e o suicídio entre os policias. “Esse sofrimento vai repercutir na psique do policial. Então ele vai desenvolver mecanismos de defesa para tentar manter o equilíbrio psíquico. O suicídio policial pode ser uma expressão do mecanismo de defesa, assim como o ato de matar alguém”, explica Souza.

Questão de classe

Para o policial militar aposentado do Paraná, Martel Alexandre del Colle, o objetivo da PM é “criar cidadãos que são das classes oprimidas para que se sintam fora da classe oprimida para que eles consigam fazer o controle social dessas classes trabalhadoras e permitam que uma elite continue vivendo no maior conforto do mundo”.

Ele explica que os treinamentos são realizados através de ambientes específicos. Por exemplo, em simulações de confronto armado, o cenário é uma favela. Quando, no entanto, o treinamento é deslocado para outro cenário, de classes mais altas, a postura do policial que está ensinando é diferente.

Neste ponto, del Colle relembra o episódio em que o empresário Ivan Storel humilhou policiais militares em um condomínio de luxo em Alphaville, na capital paulista. “Você é um lixo. Seu merda. Você é um merda de um PM que ganha R$ 1 mil por mês, eu ganho R$ 300 mil por mês. Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano”, atacou o empresário a dois PMs que atendiam a uma ocorrência.

Criar cidadãos que são das classes oprimidas para que se sintam fora da classe oprimida.

Vivendo diariamente esse contexto na pele, del Colle acabou adoecendo. “Por mais que o policial se esforce para se desumanizar, é muito difícil que a grande maioria dos policiais consiga chegar a esse patamar. Então, está sempre em conflito consigo mesmo e acaba adoecendo.”

Com os conflitos e questionamentos, vieram seus posicionamentos críticos contra a PM por meio de textos publicados na internet, cujo tema principal estava entre violência policial e o treinamento rude. Como punição, primeiro veio a transferência de batalhão. “E aí a minha depressão teve um baque muito forte. Eu fiquei internado em um hospital psiquiátrico durante 40 dias para me recuperar.”

Quando recebeu alta, foi encaminhado a uma Junta Médica da PM para uma avaliação. Um mês depois, veio a sua aposentadoria com um terço de seu salário. Hoje, um ano depois e com 30 anos de idade, ele ainda responde a dois processos: um administrativo, que prevê a exclusão integral do salário; e outro criminal, por “criticar publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar”, de acordo com o artigo 166 do Código Penal Militar, com pena de detenção de dois meses a um ano.

Desenho institucional anacrônico

Robson Rodrigues é coronel da reserva da PM do Rio de Janeiro, mestre em Antropologia, doutorando em Ciências Sociais, pesquisador do Laboratório da Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Para ele, parte da violência policial está ligada a desenhos institucionais e aparatos policiais anacrônicos para lidar com o problema atual da criminalidade.

Ele entende que as polícias têm dentro do arcabouço jurídico constitucional um desenho “muito ruim”, a partir de uma atribuição “muito equivocada”, que coloca as corporações como um monopólio do policiamento ostensivo. Isso acaba por dar grande poder às polícias militares, que ficam responsáveis desde a prevenção de crimes até o encaminhamento de ocorrências.

“São polícias que foram desenhadas no século passado e que continuam ainda com as mesmas estruturas, trabalhando em face de uma criminalidade cada vez mais globalizada, uma dimensão cada vez mais complexa da segurança pública e que precisam ser aperfeiçoadas”, afirma Rodrigues.

Política institucional

Para Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), todos esses fatores apontados pelos militares acima são, no entanto, subjacentes à política institucional de segurança pública do Brasil, que possibilita, na verdade, a violência e a consequente letalidade policial expressiva.

Muniz explica que desde 2003 existe a Matriz Curricular das Polícias Militares, bem como a Matriz Curricular das Guardas Municipais, que implementaram diretrizes de uma “qualificação continuada sobre os princípios democráticos e republicanos”, a partir de ações de polícias do mundo todo.

Segundo a docente, que também é ex-diretora do Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública do Ministério da Justiça, a resposta não está meramente na formação que os agentes recebem nas escolas de polícia.

“A pergunta passa a ser então porque essa capacidade [orientada pelas matrizes] não é cobrada e traduzida em política de policiamento, em procedimentos operacionais claros, conhecidos, públicos, de maneira a delimitar as capacidades coercitivas e os modos táticos de ação da polícia e a permitir o controle social sobre a ação policial, ou seja, procedimentos que não sejam ocultos, que sejam públicos.”

Estão tratando o problema da violação e da violência como um caso de caráter pessoal ou como uma questão estrutural?

Trata-se, na visão de Muniz, de um problema estrutural que tem a ver com política do uso da força, mecanismos de premiação e sanção, diretivas de abordagem policial, ou seja, a política segurança pública dos estados. Nesse sentido, a professora afirma que não há uma “clareza” sobre a política de uso da força no Brasil, apesar das matrizes consolidadas em 2003, que siga fielmente os procedimentos estabelecidos pela Associação Internacional dos Chefes de Polícia (IACP).

De fato, no Brasil, não há uma legislação que regulamente, por exemplo, o uso da força pela Polícia Militar. Existem apenas alguns documentos que esbarram neste ponto, como o Código Penal e o Código Penal Militar. Neste último, em seu artigo 243, o emprego do uso da força só é válido quando “indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga”, e o uso de armas somente “quando absolutamente necessário”.

“A pergunta é: as instituições policiais estão tratando o problema da violação e da violência como um caso de caráter pessoal ou como uma questão estrutural já que ela é recorrente?”, questiona Muniz.

Quem faz o sistema?

Na visão de Muniz, apenas dizer que existe uma cultura da guerra é criar um determinismo cultural que suprime as responsabilidades. De modo que o sujeito “ali concreto diz que sua mão atira porque tem uma cultura por trás”.

Você não consegue responsabilizar ninguém, porque está todo mundo dissolvido em uma cultura da guerra.

“Não é assim, existe uma política intencionalmente construída de tolerância, de conivência e conveniência. Agora, colocar na conta da cultura é retirar a responsabilidade individual e institucional. Cria essa paralisia. Então cadê o sujeito concreto? Cadê a tomada de decisão concreta? Não consegue responsabilizar o governador, o comandante, o chefe da guarnição. Você não consegue responsabilizar ninguém, porque está todo mundo dissolvido em uma cultura da guerra que você não sabe onde começa e onde termina”, afirma Muniz.

Para começar a mudar esse cenário, não é necessário alterar a Constituição Federal. Pelo contrário, “está à altura do comando da PM e do governador”, pois são transformações de natureza administrativa e procedimental. “Se essas pessoas não estão tomando essas decisões é porque talvez essas decisões não sejam rentáveis para elas. Talvez o medo, a violência e a violação tenha rendimentos eleitorais.”

Brasil de Fato entrou em contato com as Secretarias de Segurança Pública de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, todas citadas nesta reportagem. Mas até a publicação deste texto, somente a Secretaria de São Paulo respondeu.

Em nota, a SSP afirmou que o compromisso das forças de segurança pública é com a vida. Em cursos de aperfeiçoamento, temas como Polícia Comunitária, Direitos Humanos e Cidadania, Abordagem Policial e Gestão de Ocorrência são contemplados. E, por último, afirma que “a SSP, por meio de PM, participa de um grupo de trabalho acadêmico, com a Faculdade Zumbi dos Palmares e outras sete instituições, para discutir a questão da violência envolvendo policiais”.

Edição: Rodrigo Chagas.

 

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