por Luís Gomes
A chamada Guerra Cultural é uma das principais pautas da nova direita brasileira. Como apresentamos na primeira matéria desta série especial sobre a onda conservadora, as chamadas pautas de costumes estão entre os principais temas dos embates promovidos por grupos neoconservadores e neoliberais com relação à educação. Entre elas, um dos principais “campos de batalhas” é a questão da linguagem neutra, em que os gêneros masculino e feminino são substituídos por palavras de gênero neutro.
Tramitam na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e na Câmara de Vereadores de Porto Alegre projetos que desejam proibir o uso da linguagem neutra nas escolas. Assinado pelos vereadores Fernanda Barth (PRTB), Comandante Nádia (DEM) e Psicóloga Tanise Sabino (PTB), Alexandre Bobadra (PSL), Ramiro Rosário (PSDB), Jessé Sangalli (Cidadania) e Hamilton Sossmeier (PTB), o projeto da Câmara argumenta que a linguagem “neutra” torna a língua impraticável fora do papel, já que os “x” e “@” seriam impronunciáveis. “Não é apenas uma confusão inofensiva. O uso da linguagem ‘neutra’ prejudica inúmeras pessoas com problemas de dislexia ou problemas visuais. Da mesma forma, traz graves dificuldades ao processo de alfabetização, já que a noção de concordância, essencial ao nosso idioma, fica prejudicada”, dizem os autores.
Contudo, as verdadeiras disputas sobre o tema não ocorrem nas casas parlamentares, mas nas redes sociais, que amplificam a crítica aos casos em que a linguagem neutra é utilizada em âmbito escolar.
Em outubro passado, o Colégio Farroupilha, um dos mais tradicionais da rede privada de Porto Alegre, contratou o Grupo Cerco para fazer quatro apresentações teatrais para os seus estudantes. No entanto, após a primeira apresentação, a direção da escola solicitou que o grupo alterasse o texto do espetáculo, que utiliza a chamada linguagem neutra. Com a recusa dos artistas, as três apresentações finais acabaram canceladas.
Elisa Beschorner Heidrich, atriz do Grupo Cerco e mestre em Artes Cênicas, explica que o espetáculo Puli-Pulá, apresentado no Farroupilha, estreou em 2015 e que o texto nunca foi alterado. “A linguagem neutra sempre foi utilizada desde 2015 e nunca tivemos nenhuma censura, somente reconhecimento. É um espetáculo muito reconhecido, tanto pela crítica, quanto pelo público, premiado, já fizemos muitas turnês, apresentamos em feiras do livro, em instituições oficiais, já viajamos até para fora do País com espetáculos e o texto nunca foi questionado. Essa é foi a primeira e única vez que aconteceu”, diz.
Elisa acrescenta que o espetáculo já tinha, inclusive, sido apresentado no próprio Colégio Farroupilha em 2018, com o mesmo texto. “Até por conhecerem o nosso trabalho e ter sido muito reconhecido na época e agradado muito ao público, às crianças e aos professores, nos chamaram novamente”.
O espetáculo Puli-Pulá inicia com frase “Menines e menines, sejam todes bem vindes” e, ao longo do texto, faz o uso do gênero neutro em substantivos, como por exemplo usar “todes” em vez de “todas” e “todos”. O texto da peça não faz o uso dos chamados pronomes neutros, que seria, por exemplo, substituir “ele” e “ela” por “elu”.
Elisa explica que adoção do gênero neutro foi uma forma de contrapor a noção de que existem “coisas de menino” e “coisas de menina”, motivada pela percepção de que algumas crianças sofriam bullying ou tinham dificuldade de participar de ações quando se tratavam de “brincadeiras de menina” ou “brincadeiras de menino”.
“A gente chegou a fazer laboratório nas escolas em que um menino não queria participar porque era uma brincadeira de menina, sendo que era pular corda, que vários meninos adoram”, diz.
A atriz pontua também que é uma forma de contrapor estereótipos que são comuns a músicas e brincadeiras infantis. “Tem uma questão estrutural e cultural que é muito pesada, especialmente para as meninas, que têm que escutar desde pequenas com que desejam se casar, quantos filhos querem, ‘a moça bonita do laço de fita’. Já marca uma coisa que as meninas devem seguir e a gente não concorda com isso, sabe o quanto foi prejudicial nas nossas vidas e como é prejudicial na vida das crianças que a gente conhece. Foi uma necessidade que a gente viu de inclusão e de afirmar que a brincadeira é para todes”, diz.
Três das quatro apresentações contratadas estavam marcadas para o dia 29 de outubro e a última para o dia 3 de novembro. Elisa conta que o primeiro espetáculo ocorreu sem problemas e que, quando faltavam cinco minutos para os artistas iniciarem a apresentação seguinte, realizada após um intervalo, um representante da escola pediu para que os artistas alterassem trechos da peça que utilizavam a linguagem neutra. “Não era a direção que vinha falar com a gente, era através de outros funcionários e que não tinham essa opinião, então era tudo um pouco delicado, envolvia pessoas que reconhecem o nosso trabalho tendo que nos comunicar”.
A atriz afirma que a primeira resposta do grupo foi afirmar que não concordavam com o pedido de alterações. Contudo, chegaram a cogitar algumas mudanças em respeito às crianças que já estavam aguardando o início da peça. “Nós chegamos a cogitar em falar, em vez de todes, todos e todas, e fazer algumas pequenas mudanças. Porque as crianças estavam esperando para ver o espetáculo e a gente ficou muito sentido”, diz.
Porém, mais demandas foram chegando, inclusive a ameaça de que o espetáculo seria interrompido em caso de uso da linguagem neutra. “Tipo, ‘se vocês errarem, vai ser interrompida’, coisas drásticas e que seria terrível, tanto para nós, quanto para as crianças que estavam assistindo. Aí o colégio censurou o espetáculo mesmo”, afirma Elisa.
A atriz diz que o grupo não recebeu nenhuma resposta oficial da escola sobre o motivo do cancelamento dos espetáculos, tendo tomado conhecimento das razões apenas por uma nota encaminhada pelo colégio à imprensa.
Ela diz que os artistas receberam informações de que a reação negativa teria partido de um grupo intitulado “Pais Sem Partido”. Um e-mail enviado posteriormente para a escola por um pai acabou circulando no WhatsApp.
Nele, o pai diz que, ao eleger o Farroupilha para matricular o seu filho, há cerca de cinco anos, questionaram a coordenação pedagógica a respeito da “posição da escola sobre ideologia de gênero” e que ficou satisfeito com a resposta, que teria sido de “respeito às escolhas individuais das famílias”.
“Dado este histórico, nos reportamos à atitude traiçoeira, mal intencionada, desleal e ofensiva adotada pela escola no último dia 29/10/2021, ao introduzir maliciosamente uma peça de teatro que divulga em suas redes sociais que é ‘precursor[a] em falar de gênero neutro em escolas’ e ‘começa com menines e menines, sejam todes bem-vindes”, para expor o seguinte: Não aceitamos essa abordagem com crianças. Uma coisa é respeitar quem tem concepções diferentes, com que concordamos, outra é não respeitar a opinião dos pais que não querem tal enfoque para suas crianças. Afinal, a escola pede a permissão dos pais para ofertar picolé de lanche na escola, mas introduz, sorrateiramente, sem nossa anuência, este tipo de discurso na Educação Infantil! Quando nosso filho tiver capacidade de compreensão, poderá fazer suas escolhas. Até lá, vai receber em casa orientação de princípios morais seguidos por seus pais”, diz um trecho do e-mail.
O pai afirma que, ao contratar o Grupo Cerco, a escola estaria “elegendo um lado”, o que, na opinião dele, contrariaria a promessa de respeito de orientações. Ele cobra uma reunião com a diretoria pedagógica da escola e um posicionamento oficial da instituição, ressaltando que estava reavaliando a permanência do filho na escola.
Quando o cancelamento do espetáculo veio à tona, o Farroupilha emitiu nota dizendo que o cancelamento teria sido motivado pelo não uso da “norma-padrão” da Língua Portuguesa.
“Em relação ao espetáculo Puli-Pulá, esclarecemos que o Grupo Cerco foi contratado para realizar quatro apresentações. Contudo, durante a primeira e única exibição, identificamos a utilização de termos não reconhecidos pela norma-padrão da nossa língua, o que consideramos inadequado, observando-se, ainda mais, a faixa etária de crianças em fase de alfabetização ou ainda não alfabetizadas. Em razão disso, as demais apresentações foram canceladas”, diz a nota do colégio.
Elisa avalia que a justificativa usada para a escola de que a peça não respeitaria a norma culta não tem “nenhum fundamento”. Para ela, o que ocorreu foi um episódio de censura. “O colégio conhecia o texto, tinha todo o nosso material pedagógico, onde aborda toda a aceitação das diferenças e que a gente fala de questões como o bullying, etc. O colégio tinha total conhecimento e nos fez passar por uma situação completamente constrangedora”, diz.
A atriz contrapõe a defesa da norma cultura com o argumento de que, em disciplinas do colégio, a linguagem popular e coloquial é aceita e faz parte de materiais didáticos. “Se tu for olhar, tem livros que fazem parte das leituras obrigatórias do vestibular que não utilizam a norma culta do português, exatamente pela arte ser uma expressão livre. Eu poderia inventar uma linguagem se eu quisesse, poderia falar uma língua que não existe”, argumenta.
O cancelamento do espetáculo foi celebrado nas redes sociais por autoridades locais e mesmo nacionais. O vereador Ramiro Rosário (PSDB), que foi secretário municipal de Urbanismo durante o governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) e fora um dos candidatos a vereador apoiados pelo MBL (Movimento Brasil Livre) nas eleições de 2016, parabenizou o Farroupilha pela decisão.
“Parabéns ao Colégio Farroupilha por ter cancelado apresentações de uma peça teatral que ensina português errado às crianças. ‘Linguagem neutra’ não existe e não pode ser usada em ambiente escolar. Este é o tipo de colégio corajoso que eu ficarei feliz em matricular minha filha”, escreveu.
Parabéns ao Colégio Farroupilha por ter cancelado apresentações de uma peça teatral que ensina português errado às crianças. "Linguagem neutra" não existe e não pode ser usada em ambiente escolar. Este é o tipo de colégio corajoso que eu ficarei feliz em matricular minha filha.
— Ramiro Rosário (@curtaramiro) November 10, 2021
Já a deputada federal Carla Zambelli (PSL), que foi eleita por São Paulo, além de parabenizar a escola, afirmou que seria inaceitável a “imposição da pauta da linguagem ‘neutra”.
Parabéns à direção do Colégio Farroupilha – Porto Alegre!
É inaceitável, em um país onde o analfabetismo funcional ainda é um grande problema, a imposição da pauta da linguagem “neutra”, uma agenda discriminatória que excluirá deficientes visuais, auditivos, autistas e disléxicos pic.twitter.com/68QKutPKwu— Carla Zambelli (@Zambelli2210) November 11, 2021
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Faced-UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Relações entre o Público e o Privado em Educação, Iana Lima aponta que as redes sociais são um elemento importante para os movimentos conservadores, pois possibilitaram que informações que antes seriam desconhecidas para grandes parcelas da população pudessem passar a circular por aplicativos como o WhatsApp. Com isso, casos que antes apareceriam, no máximo, no noticiário local, acabam se tornando campos de batalha virtuais de interesse nacional, como foi o episódio da censura ao espetáculo Puli-Pulá.
“A gente fica sabendo mais dessas questões porque elas circulam mais. Os movimentos conservadores investem muito dinheiro na disseminação de pautas pelas redes sociais. As redes sociais são muito importante neste sentido, as coisas ganham muito terreno no senso comum pelas redes. Tem coisas que parecem muito pontuais e pequenas, mas, se a gente pega elas no conjunto, elas têm uma preposição muito forte. Por exemplo, isso da linguagem neutra é um ataque aos movimentos pela pluralidade, a ideia de que todos, todas e todes somos passíveis dos mesmos direitos. Tu ataca os processos democráticos, como se as pessoas não pudessem ter os mesmos direitos e aos poucos, eles vão sendo minado por esses discursos conservadores e de direita”, diz.
Professora da UFRGS e coordenadora do grupo do mesmo grupo de pesquisa, Vera Maria Vidal Peroni cita o Programa Brasil sem Homofobia, lançado em 2004 pelo governo com o objetivo de combater a violência e o preconceito contra a população LGBT, como um primeiro foco de embates que aglutinou movimentos neoconservadores que não necessariamente estavam ligados anteriormente. Ela pontua também que, politicamente, a pauta de costumes tem um poder de mexer com um eleitorado maior do que as pautas econômicas defendidas por esses grupos conservadores.
“O programa era tímido quanto aquilo que a gente esperava para a construção de uma sociedade realmente democrática, mas era demais para uma sociedade conservadora como a brasileira. Então, também isso começou a florescer, a questão dos pais falando ‘eu não quero que a escola determine a questão da sexualidade dos meus filhos, eu não quero que fale sobre a a questão da sexualidade, eu não quero que fale sobre a questão do aborto. E até o MBL, que era ultraliberal, não era conservador, se uniu a essa pauta da Escola Sem Partido, porque ela pegou muito mais na família tradicional brasileira do que a pauta do ultraliberalismo”, afirma.
Iana Lima pontua que a educação é um importante campo de batalha para os movimentos conservadores, mas não é o único campo de disputa, como tem se visto na pandemia com a defesa de movimentos antivacina e ataques a medidas governamentais de prevenção à covid-19, como o uso de máscaras. Contudo, distintas pautas e movimentos conservadores muitas vezes acabam se entrelaçando e se encontrando na educação.
“A educação é um campo social de disputa, é um lugar de atravessamento de poder. Então, quando a gente pesquisa, a gente entende porque a direita está preocupada com a escola, porque é um lugar em que tu vai criar muitas ideias e muitos pensamentos contra hegemônicos. Não é à toa que a gente teve um movimento de ocupação das escolas em 2016. É um dos campos sociais em disputa, mas está totalmente entrelaçado com outros campos em disputa”, diz Iana Lima.
Semanas depois da censura ao espetáculo no Farroupilha, outro episódio ocorrido em uma escola particular de Porto Alegre também foi alvo de atenção de políticos conservadores. No dia 29 de novembro, uma criança de sete anos foi retirada de uma sala de aula do Colégio Anchieta por se recusar a usar a máscara, que era considerada como de uso obrigatório pelas regras da escola para o enfrentamento à covid-19.
Os pais da criança foram ao local e, em determinado momento, a Brigada Militar foi acionada. Nas redes sociais, políticos como o deputado federal Bibo Nunes (PSL) e a vereadora Mari Pimentel (Novo) classificaram como uma “vergonha” e “inaceitável” o colégio ter acionado a polícia para “obrigar” a criança a usar a máscara.
Contudo, em entrevista ao jornal Zero Hora, o comandante do 11º Batalhão da Brigada Militar (BM), tenente-coronel Luís Felipe Neves, que respondeu à ocorrência, esclareceu que a BM não foi acionada por causa da criança, mas sim em razão do comportamento do pai do aluno, que, segundo ele, estava “alterado, gritando, gesticulando”. Neves afirmou ainda que o pai, após ser orientado, se acalmou e deixou o local.
Em nota divulgada no dia 30 de novembro, o colégio Anchieta ressaltou que a obrigatoriedade do uso de máscara foi comunicada a todos os pais no dia 24 de novembro e que a presença da BM ocorreu para “garantir o restabelecimento do bom convívio e preservar a integridade dos alunos e colaboradores”.