O que está em jogo com os ajustes fiscais no Brasil?

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Por Leonardo Segura Moraes, para Desacato.info.

Vivemos uma crise que a cada dia se explicita no nosso cotidiano. Reparem que usei o termo genérico “crise” sem adjetivos próprios. A crise é econômica e política, pois se é na produção e distribuição material da vida que ela se origina, sua expressão se dá fundamentalmente por meio dos conflitos de interesses cristalizados nas estruturas sociais de decisão pública.

Os economistas debatem sobre os ajustes fiscais atualmente em curso no país. Por um lado, alguns argumentos afirmam que a interpretação a respeito da psicologia dos agentes feita pelos ajustes está equivocada e que o custo social dos mesmos é muito alto. Por outro lado, há os argumentos na linha de que é preciso tratar bem os fundamentos econômicos para que as forças de mercado operem adequadamente e promovam o crescimento econômico de longo prazo. O ajuste, portanto, seria o realinhamento “correto” do papel do Estado na economia.

Mas a questão que fica é outra: quem ganha e quem perde com o ajuste fiscal? Dito de outra forma: o ajuste fiscal é para quem? Respondê-la nos força a uma retrospectiva dos últimos momentos da tragédia brasileira, ainda que essa seja uma história bem mais longa e difícil de traçar em poucas linhas. Por isso, concentrarei atenção no período que vai de 2015 a 2018, procurando apresentar o quadro geral dos ajustes econômicos recentes e o que está em jogo nessa economia política brasileira.

O ponto de partida é o ano de 2015, o que é razoável, pois após as eleições presidenciais do ano anterior foram implementadas medidas restritivas do ponto de vista econômico. Não por acaso, o ministro da fazenda alçado ao posto naquele momento fora Joaquim Levy, defensor da segunda linha de argumentos apresentada antes. Contudo, se o economista em questão deu o pontapé inicial a uma série de medidas visando o equilíbrio das contas do governo, após o impedimento do governo de Dilma Rousseff esse sentido da ação econômica de Estado assumiu contornos mais intensos.

A partir de maio de 2016, a política econômica implementada levou às últimas consequências o significado da expressão ajuste econômico. De maneira antidemocrática, uma série de ações foram executadas a toque de caixa pela nova gestão, ferindo completamente não só o que havia sido decidido pela soberania popular nas urnas em 2014, mas a própria Constituição brasileira de 1988. A começar do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 241, de 2016, que ao ser encaminhada ao Senado foi renomeada como PEC 55 e finalmente aprovada com assustadora velocidade em dezembro desse mesmo ano sob o nome de Emenda Constitucional nº 95. Desse modo, instituiu-se “o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros”[2].

Como o próprio nome da ação sugere, trata-se de uma reparação no conjunto de normas que comandam o Estado brasileiro. No entanto, por que uma alteração tão brusca na Constituição Nacional foi concebida e aprovada em tão pouco tempo? Afinal, é uma medida que determina, sem consulta popular, que o governo federal estará sujeito a um teto de gastos em suas despesas primárias pelos próximos 20 anos. Em 10 será possível rever tal decisão, mas dado que é uma Emenda Constitucional isso só poderá ocorrer por meio de outra Emenda Constitucional. Na prática, significa ser bastante difícil de revisão, mesmo que o povo decida nas urnas por um projeto político contrário ao que ela determina.

Outra das medidas tomadas sem a menor possibilidade de consulta popular mais ampla foi a Reforma Trabalhista de 2017. Por meio da Lei nº 13.467, alterou-se fundamentalmente as relações de trabalho no país de modo a flexibilizar as condições de trabalho, a organização sindical e os processos relacionados à negociação coletiva e justiça do trabalho. Entretanto, tal alteração novamente ocorreu de maneira extremamente ligeira e sem espaço de debates para além do Congresso. Sendo assim, o projeto de lei encaminhado em dezembro de 2016 foi sancionado como lei em julho de 2017.

Tanto a Emenda Constitucional nº 95 como a Lei nº 13.467/2017 são alterações institucionais nas relações políticas e econômicas do país. Porém, apesar dessa mudança ter consequências estruturais, elas foram decididas em meio a uma série de arbitrariedades nada consensuais juridicamente de modo a passar por cima das forças políticas contrárias. Para o atual governo, a aprovação da Emenda Constitucional nº 95 e da Reforma Trabalhista eram fundamentais para o reequilíbrio das contas públicas, das condições macroeconômicas para o investimento produtivo e a geração de empregos[3].

Entretanto, para a maioria da população, ambas medidas eram majoritariamente reprovadas[4]. Somadas à constante impopularidade do atual presidente da República[5] e os seguidos ataques à Constituição de 1988 desde que o já nem tão novo governo assumiu em 2016[6], é no mínimo suspeita a legitimidade dessas mudanças e nos leva a suspeitar do caráter democrático das mesmas. Mas, economicamente como ficam?

De acordo com pesquisa recente realizada pela LCA Consultores a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a pobreza extrema no Brasil aumentou cerca de 11% entre 2016 e 2017[7]. Apesar de controlada a inflação, de um governo claramente apoiado pelas entidades patronais mais importantes no país[8], o emprego formal cai sistematicamente ao passo que aumenta a precarização do trabalho, como mostra o boletim de março de 2018 do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (DIEESE)[9]. Por outro lado, a desigualdade de renda aumenta desde 2015, elevando o abismo social entre ricos e pobres num país estruturalmente desigual[10].

Frente a essas informações, devemos nos questionar quem de fato está pagando por essa crise. Ao que consta, é a classe trabalhadora, os(as) mais pobres e marginalizados(as), tanto politica quanto economicamente, que estão arcando com os custos dos sucessivos ajustes econômicos implementados no país desde 2015. Vale lembrar que o sistema tributário brasileiro isenta do imposto de renda os lucros distribuídos e dividendos, os quais se constituem como duas das principais fontes de rendimentos dos mais ricos no país[11].

Contrariamente ao que afirma o atual governo, as despesas primárias não necessitam de revisão, mas o problema central reside na queda da arrecadação[12]. Em um cenário de crise – que não é apenas brasileira, mas internacional e isso nos afeta diretamente – as soluções levadas à frente têm colocado na conta dos mais pobres os custos da recuperação. Em contrapartida, os grandes bancos brasileiros registraram elevado crescimento na lucratividade em 2017 – da ordem de 21% – se comparado com o ano anterior[13].

Traduzindo o economês para claro português brasileiro, as tais despesas primárias são, na verdade, o conjunto de gastos federais em saúde, educação, cultura, etc. Quer dizer, todos que não entram na conta financeira. Não obstante, como mostram levantamentos recentes, nas universidades federais a maioria dos(as) alunos(as) são oriundos(as) de famílias mais pobres[14]. No que diz respeito à saúde, pesquisa recente do ministério da saúde e do IBGE mostrou que os serviços públicos de saúde são a referência para a maioria da população brasileira[15]. Porém, para “reduzir” gastos tramitam medidas e propostas que visam o fim de programas como o Farmácia Popular, que garante medicamentos gratuitos e com descontos para quem precisa[16], a destruição do Sistema Único de Saúde (SUS)[17] e o contingenciamento nos orçamentos das universidades federais[18]. Mudanças políticas e econômicas reveladoras de que o que está em jogo com os ajustes econômicos é a perpetuação do nosso triste e histórico quadro social.

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm

[3] http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2016/08/meirelles-teto-para-gastos-e-essencial-para-o-brasil-crescer e https://exame.abril.com.br/economia/meirelles-projeta-6-milhoes-de-empregos-com-reforma-trabalhista/

[4] http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2016/12/1840963-maioria-e-contra-aprovacao-da-pec-55.shtml e http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/05/1880398-maioria-rejeita-reforma-trabalhista.shtml

[5] http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-04/pesquisa-cniibope-aponta-que-popularidade-de-temer-mantem-se-estavel

[6] https://theintercept.com/2017/05/12/um-ano-de-temer-em-10-ataques-a-constituicao/

[7] https://www.brasildefato.com.br/2018/04/12/pobreza-extrema-aumenta-11-no-ultimo-ano-economistas-culpam-trabalho-informal/

[8] http://www.valor.com.br/financas/4977824/febraban-elogia-politicas-de-temer e https://www.cartacapital.com.br/politica/fiesp-comemora-e-ve-estabilidade-economica-em-salvacao-de-temer

[9] https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2018/boletimEmpregoEmPauta7.html

[10] https://www.cartacapital.com.br/blogs/brasil-debate/desigualdade-aumentou-no-brasil-pos-austeridade

[11] http://brasildebate.com.br/desnudando-o-1-brasileiro/

[12] https://bianchini.blog/category/pec-241/

[13] http://www.valor.com.br/financas/5341329/lucro-de-grandes-bancos-cresce-21

[14] http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,2-em-3-alunos-de-universidades-federais-sao-das-classes-d-e-e,10000070529

[15] http://www.brasil.gov.br/saude/2015/06/71-dos-brasileiros-tem-os-servicos-publicos-de-saude-como-referencia

[16] https://www.revistaforum.com.br/temer-quer-acabar-com-o-programa-farmacia-popular/

[17] http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/577946-governo-e-planos-de-saude-articulam-fim-do-sus

[18] http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,orcamento-das-universidades-federais-do-pais-cai-r-3-4-bilhoes-em-tres-anos,70001957732

 

Leonardo Segura Moraes é economista pela PUC-Campinas, mestre e doutorando em economia pela UFRGS. Faz parte do Movimento Economia Pró-Gente.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.