Está em pauta no Congresso Nacional a votação do ‘Estatuto do Nascituro’ que, caso aprovado, significará um grande retrocesso em nossa legislação. O tal ‘Estatuto’ extingue o direito ao aborto em caso de estupro, e em troca oferece uma bolsa para o sustento da criança, como se o problema fosse alimentar, vestir e educar. E, pasmem, se descoberto o estuprador, o nome deste poderá constar na certidão de nascimento da criança e deverá pagar pensão alimentícia, ou seja, será mantido um vínculo permanente com a vítima do estupro. Quer dizer, para os nossos políticos, a vítima deverá conviver para sempre com a dor e o trauma do estupro, pois o Estatuto lhe coíbe o direito ao esquecimento e a superação. O estuprador estará cotidianamente em sua vida, pelo pagamento da pensão – como uma recompensa pecuniária para a vítima –, pelo nome do estuprador na certidão de nascimento de seu filho e a criança em si. É neste ponto que os fundamentalistas religiosos – sim, são eles novamente que estão por trás desse absurdo – defendem o tal ‘Estatuto’: o direito à vida.
Não vou entrar no mérito da infelicidade desta criança, tanto por sofrer a rejeição da mãe, quanto por ter em sua certidão de nascimento o nome de um estuprador. Nesta situação, creio que o testemunho de quem vive esse drama pode ser mais contundente para refletir sobre o assunto, como o testemunho de Claudia Salgado, em que destaco os seguintes dizeres: “Por ser fruto de um estupro, me sinto até mesmo no direito moral de ser a favor do aborto. Eu sei o quanto foi horrível e quantas vezes desejei não ter nascido, pois acredito que a vida da minha mãe teria sido muito melhor se isso não tivesse acontecido. Ela teria tido mais tempo para concluir os estudos, fazer coisas que uma jovem da idade dela faria se não tivesse um filho nos braços. Ela não teria passado pela dor da reprovação, pela humilhação que passou e teria muito mais chance de ter formado uma família e ter um lar ajustado.” Com certeza, esses políticos que elaboraram e votam favoráveis a essa lei não estão pensando nas crianças – frutos de estupros – e muito menos nas mulheres. De fato, o Congresso está legitimando o estupro e aqui está o ponto que desejo discutir: a ‘Cultura do Estupro’ que nos assombra cotidianamente, num presente tão ilusoriamente considerado mais ‘evoluído’ do que os tempos vividos por nossos antepassados.
A ‘cultura do estupro’ me incomoda há alguns anos, já fui professora de adolescentes e em certa aula sobre a Guerra na Bósnia/Sérvia em que conversava sobre os estupros em massa e a limpeza étnica, fui surpreendida com um ‘Que legal!’. Chocada, parei a aula naquele momento e comecei a falar sobre o crime de estupro. Nunca esqueci essa aula, pois sempre questionei o fato daquele aluno se sentir tão à vontade e tão confiante em dizer ‘Que legal!’, quais as conversas que participou, quais os sites visitados, como a família lhe autorizou tal comportamento? Sim, pois alguém para exprimir tal opinião precisava se sentir autorizado à ela.
Desde esse episódio, fiquei mais atenta e surpreendo-me com o crescente número de estupros pelo mundo. Cito alguns casos em que o estupro é pensado como ‘epidemia’ pelos estudiosos do tema: há o feminicídio no México, problemas de anos; os recentes casos em Nova Délhi, na mística Índia; diversos países do continente Africano, onde é usado como ‘arma’ de guerra, onde também é muito comum as mulheres serem estupradas por seus maridos. No Rio de Janeiro, podemos citar os casos de estupros em vans e ônibus, mas a verdade, pouco noticiada, é que os casos se espalham pela cidade maravilhosa, situação também alarmante em Campinas. Na Arábia Saudita, um escritor de auto-ajuda convocou pelo Twitter os homens a estuprarem as mulheres que ‘ousassem’ trabalhar como caixas de supermercados, trabalho permitido há pouco tempo às mulheres. Poderia citar muito outros países e municípios brasileiros, pois o estupro está se tornando uma epidemia mundial.
Afinal, o que está acontecendo com os homens? Sentem-se ameaçados diante da igualdade que vem sendo conquistada pelas mulheres? Por que estes homens não conseguem refletir sobre seus atos de violência? A resposta que penso para essa questão está num retorno do sentimento de misoginia. Se na Idade Média, resultou na caça às bruxas, agora tem se manifestado pelo estupro e outras formas de violência à mulher.
Misoginia é o ódio, o desprezo, a aversão pelas mulheres. Não é apenas machismo, mas sim um sentimento muito mais forte, que acredita fervorosamente na inferioridade feminina e que as mulheres devem ser submissas aos homens, servi-los. As mulheres são pensadas como um mal necessário à reprodução da espécie humana. Nessa lógica, toda violência contra a mulher é válida e incentivada, principalmente contra as mulheres que transgridem o que consideram a ‘ordem natural’ do mundo, que para os misóginos é a da dominação masculina.
A misoginia tem crescido assombrosamente, inclusive no mundo ocidental que parecia livre do que considera como uma barbárie, mas parece ter atingido o seu novo ápice após a popularização da internet e a possibilidade das postagens anônimas, onde muita gente destila seu ódio.
Somos impregnados diariamente por esse sentimento misógino, em especial pela publicidade, que cada vez mais expõe a mulher como objeto sexual ou como quem apenas se interessa pelo cartão de crédito do marido. Esse papel que a mídia estabeleceu para as mulheres, paulatinamente foi ocasionando ódio, aversão e uma certeza da inferioridade feminina. Mulheres são corpos a serem consumidos com os produtos que vendem. E o objeto-mulher deve se render a padrões de beleza, dietas, bulimia, anorexia, silicones, plásticas, maquiagens, roupas de grife, perfumes, sapatos, etc. Tecnologias que esvaziam o ser, que o tornam superficial em relação ao pensar e ao existir. Complementar a mass media, temos filmes americanos para adolescentes e jovens que abordam as agruras da primeira relação sexual em festas universitárias, onde muitas garotas bêbadas transam com os jogadores bonitões. Há décadas esses filmes disseminam o estupro e nunca foram questionados. As indústrias, fílmica e publicitária, reduzem a mulher a uma consumidora, interesseira, ignorante, fútil, a um corpo a ser consumido. Qual sentimento você alimentaria por esse ser? Elza Soares em sua música A Carne, canta que ‘A carne mais barata no mercado é a carne negra’, tomo emprestada a sua letra para dizer que hoje ‘a carne mais barata do mercado é a carne da mulher.’
Posso continuar a linha de pensamento e dizer que a impossibilidade de consumir, frustra estes homens e a frustração causa violência dirigida à mulher, que é usada na publicidade como recompensa ao consumo. (Se eu tenho aquele carro, terei uma mulher bonita, também) É uma forma de explicar a epidemia de estupro. Porém, não aceito pensar que o ser humano é apenas uma marionete da mídia, de empresários capitalistas e políticos. Todos sabem que o estupro e o assassinato são crimes, mas no instante em que poderiam optar em não cometer estas violências, decidem pelo prazer e sensação de poder que estes atos lhes proporcionam. Temos sim uma sociedade doentia, formada por indivíduos em crise ética e moral, em que a misoginia produz uma epidemia de estupros e feminicídio.
A misoginia é secular, intermitente e estamos em um momento no qual este sentimento se propaga cada vez mais. Porém, cabe a nós mudar essa realidade, a partir de uma reflexão pessoal sobre o machismo e a misoginia, mudar nossas atitudes e um olhar atento às ideias que nos são vendidas pela publicidade, pelo cinema, livros de auto-ajuda e pelo fundamentalismo religioso. É necessário cortar os fios daqueles que nos manipulam e buscar uma ética para a nossa vida. E um passo importante é compreender e praticar a igualdade entre homens e mulheres, e também entre heterossexuais, homossexuais e transgêneros. Esqueçamos os rótulos e classificações e respeitemos todos os seres humanos em igualdade. Esta é uma ética possível e fundamental para o viver.
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* SALGADO, Claudia. Sou fruto de estupro e a favor do aborto. http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questoes-de-genero/265-generos-em-noticias/19202-sou-fruto-de-estupro-e-a-favor-do-aborto
Carla Fernanda da Silva é historiadora e mantém coluna no Portal Blumenews, de Blumenau. Atualmente cursa doutorado em história pela Universidade Federal do Paraná.
Seu blog: www.escritoslivres.blogspot.com
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