O que encontrei numa coleção de moedas. Por Guilherme Sant’Anna

Foto: Arquivo Pessoal. A coleção de moedas do meu avô, acrescida das que eu ajuntei.

Por Guilherme Sant’Anna, para Desacato. info.

Quando eu tinha uns 10 anos, minha avó me deu uma coleção de moedas antigas que pertencia ao meu avô. Ela via o meu cuidado com as coisas?—?nunca fui de perder ou quebrar meus brinquedos?—?e provavelmente me julgava interessado naquilo. E eu era, mesmo que não soubesse muito bem o porquê. Guardei bem a coleção, limpei as moedas, e tratei de juntar mais algumas, quando as encontrava fortuitamente. Não sei qual era o interesse do meu avô em colecionar aquelas moedas, e minha avó, que talvez tivesse uma resposta para isso, também já faleceu. Como até eu não sei totalmente o meu interesse em mantê-las comigo, vejo que essa não é a questão mais importante. Fato é que a coleção foi passada e permaneceu comigo até hoje, 15 anos depois.

Não conheci meu avô materno pessoalmente. Ele faleceu quando minha mãe tinha 4 anos, deixando-a como a filha mais nova, junto com meu tio, que na época tinha uns 18 anos e minha avó, sua segunda esposa. Viúvo de um outro casamento com 2 filhos, ele trabalhava como civil numa oficina de um quartel da aeronáutica — confeccionava peças de metal— quando conheceu minha avó. Tudo o que sei dele vem de segunda mão, de memórias contadas por outras pessoas, de fotos, de artefatos deixados por ele… A não ser pela sensação que corre em mim como sangue, a certeza de que ele vive em mim, assim como os demais antepassados que desconheço.

Graças a ele e a muitos outros, algo como eu pôde nascer. Pode parecer despropositado lembrar de algo tão óbvio, mas é justamente quando a obviedade toma conta que nos esquecemos das coisas. Essa relação ancestral costuma ser esquecida quando nos consideramos apenas indivíduos autônomos. Quantas pessoas se encontraram, provocaram dores e alegrias entre si, se sacrificaram, para que a vida seguisse adiante? Pensei em escrever este texto para, de certo modo, apropriar-me de um pedaço desse legado que recebi em forma de uma coleção de moedas. Porém, com certeza, as marcas que recebemos e as que deixamos não se resumem às heranças materiais. Elas representam algo muito mais profundo. Posso afirmar, inspirado por Guimarães Rosa, que uma porção de moedas velhas foi a ponta de um mistério. Da ponta começou uma jornada através de gerações e?—?por que não??—?pra dentro da história trágica da humanidade.

Quando peguei as moedas da coleção e senti seu cheiro metálico, seus desenhos gastos pelo tempo, me ocorreu que elas tivessem sido mais importantes no passado do que hoje. Hoje são lembrança do meu avô. Mas que teriam sido antes?

Há alguns anos tenho estudado sobre dinheiro. Quanto mais estudava, mais me incomodava não ter aprendido sobre o assunto antes. “Como não aprendi sobre isso na escola? Como não sabia que os bancos cobram taxas absurdas, que há diferentes formas de pagar impostos? Que às vezes é melhor alugar do que comprar uma casa? Que é possível alcançar a independência financeira?” Minha indignação crescia proporcionalmente à quantidade de informação acumulada.

Assim, durante algum tempo, flertei com a ideia de viver de renda. Trata-se de matemática simples: se aquilo que alguém recebe por investimentos ou aplicações financeiras lhe proporciona o dinheiro suficiente para seus gastos, pode-se dizer que tal pessoa atingiu a independência financeira. Se eu preciso de 1.000 reais para passar um mês, por exemplo, e recebo isso através de um patrimônio acumulado , não preciso mais trabalhar para passar o mês. Mas buscar isso não me dava paz.

Sempre me vinha à mente um ditado bastante verdadeiro para as atuais condições do mundo: quando alguém se dá muito bem, alguém se dá muito mal. Em outras palavras, não há mágica num mundo em que o “se dar muito bem” depende da desigualdade de acumulação de capital, da diferença de acesso a boas oportunidades e recursos. Isto é, um mundo que se mantém tal como está porque tem gente que não tem muito com o que contar, e gente que se beneficia disso. Aí há um embrolho, uma contradição essencial: de um lado, boa convivência e solidariedade; de outro, a de manutenção das hierarquias por diferença de poder. Há nuances entre essas duas lógicas, nada nunca é tão simples e dicotômico. Mas é forçoso admitir que o dinheiro, de uma forma ampla, e as moedas, como as da coleção, são crias do poder.

Ao estudar a história das moedas e do dinheiro me deparei com o que há de trágico na história da humanidade. A tragédia diz respeito à caminhada humana dolorida e desconhecida para nós mesmos, da qual fazemos parte. Muitos dos acontecimentos que nos distanciaram do dito mundo natural trouxeram consigo novas configurações sociais, a resolução de alguns problemas e a revelação de outros.

O dinheiro tem uma história rica. Ele assumiu diferentes formas em diversas culturas e épocas. Seu nascimento se mistura com a história da agricultura, da escrita, da matemática e do poder. Amplamente, podemos entender o dinheiro como uma representação de uma reivindicação sobre as coisas do mundo. Em outras palavras, dinheiro é aquilo que sinaliza o direito de acesso a alguma coisa. Civilizações antigas como a dos sumérios e a dos egípcios tinham registros contábeis em seus templos, uma forma de controlar dívidas e créditos. Porém, muitas coisas além de registros já foram dinheiro: sal, gado, conchas, metais… Vejamos as moedas metálicas, afinal, foram elas as deixadas pelo meu avô.

Pelo menos desde a ascensão das chamadas civilizações agrícolas, as coisas qualitativas do mundo passaram a ser contabilizadas. Entretanto, foi a partir do século VI a.e.c que as coisas passaram a ser mensuradas em função de moedas de ouro ou prata, cunhadas por uma autoridade. Isso teve o efeito de popularizar o uso de moedas em transações comerciais. Metais preciosos como ouro e prata já eram usados como dinheiro, pesados conforme determinados padrões no antigo Egito ou China, por exemplo. No entanto, as moedas metálicas foram uma invenção atribuída ao reinado de um dos homens mais poderosos do mundo: o rei Creso da Lídia, no período de 560–547 a.e.c. Com essas moedas o povo da Lídia comerciava, e seu rei financiava construções e seu exército.

A opulência de Creso não durou muito, derrotado que foi pelo rei Ciro II da Pérsia. As moedas metálicas alcançaram vitória mais duradoura – existem até hoje, praticamente em cada canto do mundo. Elas se espalharam pela Grécia, onde eram usadas para coletar impostos, e por Roma, sendo uma das bases da expansão de um império que duraria séculos. Tornou-se mais fácil, com o uso das moedas de metal, o acúmulo de poder num meio comum que dava direitos para além do estritamente necessário para viver. Isso ao menos nessa região do mundo. Em outras partes, como nas Américas, esses metais eram mais usados como adornos do que como meio de troca, sendo o verdadeiro dinheiro as sementes de cacau, ou conchas de búzios. Não por muito tempo, pois a crença de que o dinheiro de verdade eram moedas de ouro e prata viria a dominar o mundo. Como muitas das transformações históricas, a hegemonia das moedas não se deu pela livre aceitação dos demais povos, mas sim pela guerra, pelo saque e pela escravização.

Graças à falta de terras agricultáveis, os gregos forçavam escravos a trabalhar em suas minas de prata, as quais usavam para conseguir commodities com outros povos. No império Romano, as guerras eram financiadas com os objetivos de saquear outros povos e conquistar áreas ricas em minério. Essas não eram as primeiras guerras financiadas objetivando lucros na história e, infelizmente, não seriam as últimas. Depois, as moedas participaram do financiamento das cruzadas, a tentativa de conquista promovida pelos cristãos da “terra sagrada” que os muçulmanos habitavam.

As moedas também financiaram a conquista das Américas. Cristóvão Colombo só conseguiu apoio para sua viagem por conta da promessa de lucro, isto é, do retorno de maiores quantidades de ouro do que o investido. Os povos das Américas viriam a conhecer a ânsia desmedida pelos metais, aumentada com o passar dos séculos e com o poder crescente daqueles que saqueavam e escravizavam. Também na África as relações mudaram: a escravização dos africanos ganhou a forma de investimento para os europeus, sendo um artifício usado por capitalistas ricos para fazer seu dinheiro crescer. Foi um aumento de poder baseado na expropriação de pessoas de suas terras e famílias, na degradação do trabalho forçado nas Américas. Portugueses, Holandeses e Espanhóis dominavam esse tráfico, até que os Ingleses conquistaram a hegemonia em 1713, com a Companhia dos Mares do Sul.

Essa companhia já era uma parceria público-privada que buscava diminuir a crescente “dívida nacional” inglesa, isto é, a dívida que o estado inglês possuía com algumas pessoas e instituições privadas. Essa “dívida nacional” vem desde a criação do Banco da Inglaterra, em 1694, com a qual o estado inglês angariou recursos para guerrear contra a França. Essa invenção inglesa facilitou a capitalização da violência e do poder estatal de cobrar impostos, em benefício de uma minoria e em prejuízo dos demais. O império britânico, o maior que já havia existido no mundo, foi bem sucedido em espalhar esse modelo de poder. Hoje, é comum que se fale em títulos da dívida pública em praticamente qualquer país do mundo.

Um outro artifício viria a surgir nos Estados Unidos, em 1886, e a transformar o poder: a noção de pessoidade corporativa (), a qual garantiu às corporações, por lei, alguns direitos reservados, até então, às pessoas. No entanto, diferentemente das pessoas, as corporações não sentem dor, não têm consciência moral, não podem ser presas nem morrem. Desde então, vemos as megacorporações dominando o mundo, engolindo-se umas às outras, engolindo países inteiros, pessoas, culturas etc.

Esses milênios reduzidos em parágrafos são muito pouco, mas eles servem para mostrar um ponto que me chamou a atenção: o da tragédia que se instaura com a busca e acúmulo de poder baseado no egoísmo.

Existe um mito grego que trata dessa ânsia por poder, o do titã Cronos, filho de Gaia (terra) e Urano (céu). Cronos invejava o poder de seu pai, o governador do universo. Depois de castrar o próprio pai, ele se tornou o líder entre seus irmãos. Teve seis filhos com sua irmã Reia, os quais ele devorava ao nascerem. Engolir os próprios filhos era uma forma de tentar escapar da previsão do oráculo – um de seus filhos iria destroná-lo. Apenas Zeus escapou, porque Reia enganou a Cronos dando-lhe uma pedra no lugar do bebê. Depois que Zeus cresceu, ele pediu ajuda à filha do titã Oceano, Métis, para se vingar do pai. Ela deu uma poção que faria Cronos vomitar todos os filhos engolidos. Com seus irmãos recém regurgitados, Zeus batalhou contra os titãs e finalmente derrubou o pai, aprisionando-o no Tártaro.

Francisco Goya — Saturno devorando a su hijo.

Tantas atrocidades foram feitas com o objetivo de acumular poder, retê-lo e assegurá-lo para si. Me espanta imaginar quantas pessoas já se corromperam, quantas civilizações que pensavam de outra forma foram violentadas e aniquiladas, quanto dano já foi causado ao planeta em nome disso. E, pior, quando o saque está bem assegurado, armazenado nas moedas douradas, protegido por cofres e legislações, escrito com palavras complexas no discurso científico – quando ele é, enfim, considerado algo natural, como se a desigualdade fosse uma obra da natureza, parece ser só questão de tempo: um ladrão mais forte e mais esperto o rouba, e dá continuidade à tragédia. De acordo com o mito grego, esse ladrão não é qualquer um, mas um filho da mesma ganância que acumulou pensando unicamente em si, acreditando matar toda sua prole. Haverá um limite?

Até pouco antes de minha avó falecer eu a ouvia suspirar o nome do meu avô, em momentos variados do dia, como um bocejo triste que insistia em retornar. Seu lamento, 40 anos depois de ele ter falecido, me mostra que o tempo de Cronos, o tempo cronológico, não corresponde ao tempo da saudade. Cronos, em seu furor, dificilmente saberá o que é a experiência do amor. Parte do legado deixado pelo meu avô foi em moedas, mas o que passou passou por ele, e que chegou até mim, foi uma saudade profunda. Sinto que essa saudade vem de um universo anterior ao Céu e à Terra, anterior a Cronos e a Zeus – uma saudade da completude que talvez nunca tivemos, mas que recordamos como se a conhecêssemos.

Nessa corrida de revezamento cíclica que é a vida, trato de entender o que me foi legado por quem veio antes, apropriar-me disso de alguma forma, e passar. Já não nutro com tanto afinco o sonho da independência financeira — por conhecer o atual sistema financeiro e saber que ajuntar dígitos numa conta não resolve a questão da vida. Ainda assim, há que se viver neste mundo tal como ele é, com desafios que meu avô nem poderia imaginar. A coleção de moedas antigas pode ser passada adiante, aumentada ou diminuída pelas circunstâncias. Mas essa saudade cósmica, a própria experiência de unidade que se sente ao amar, essa sim deve seguir. Não somente porque eu queira passá-la, mas porque, em termos de poder, ainda acredito que sua força é mais poderosa do que qualquer moeda, e mais poderosa do que eu.

Boa parte deste texto se baseia no livro de Tim di Muzio, o qual desenvolve um estudo interdisciplinar excelente de economia política crítica. Recomendo muito a leitura a quem se interesse pela temática.

Tem mais textos do Guilherme aqui:

A dor do luto: tristeza que pode virar saudade. Por Guilherme Sant’Anna

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Guilherme

Guilherme Sant’Anna é psicólogo (CRP 05/57577), formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social nessa mesma universidade. Ele realiza atendimentos de psicoterapia online e, se você quiser entrar em contato, pode fazê-lo pelos seguintes meios:

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