O que é povo? Quem é povo?

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Com a eleição de João Dória, do PSDB, para a prefeitura de São Paulo, a palavra povo voltou a ganhar vez, principalmente nas redes sociais. É “povo” pra lá, é “povo” pra cá. Dependendo do contexto, dizer povo significa dizer nós, assim como dizer povo pode significar eles. A futura primeira-dama, Bia Dória, em entrevista à Folha de S. Paulo disse: “me sinto do povo”. Assim, os sentidos mudam, a depender de algumas condições. E é sobre isso que eu gostaria de falar.

Por Amanda Cotrim (*) para o Diálogos do Sul.

Afinal, o que é povo?

Após as eleições municipais, muita gente responsabilizou a esquerda brasileira pela vitória de João Dória, enfatizando que o “povo o elegeu”, na relação povo e direito; também tiveram aqueles que votaram no empresário e se sentiram representados na categoria “povo”, na relação povo e localidade: “eu sou do povo”; sem contar os que responsabilizaram apenas os eleitores e não consideraram as condições sociais, históricas, ideológicas e materiais, enfatizando que “o povo não sabe votar”, quase como quem diz “o pobre não sabe votar”. É difícil determinar onde estão esses “grupos”, pois, acreditem, não é possível saber onde começa e onde termina um discurso. Alguns discursos nunca terminam; simplesmente se transformam, se deslocam, se tornam outro.

De modo geral, aqueles que dizem povo tentam, nem sempre intencionalmente, preservar certa identidade que designa a palavra como coletivo, como unidade: “O povo o elegeu”; “O povo quis assim”; “O povo tem que aprender a votar”; “Eu sou do povo”. Essa noção de unidade, precisamos lembrar, é ideológica e tem projeção na histórica política, afinal, dizer povo, quase sempre, disfarça as contradições sociais, porque nessa noção de povo não há divisão, mas sim uma espécie de tecido social que parece moldar o modo como as pessoas pensam e dizem.

A questão que deveríamos pensar, mesmo sem ter uma resposta pronta, é: quando eu sou do povo e quando o povo é o outro?

Todo mundo pensa que sabe o que é povo. Na Academia e na militância, por exemplo, o povo quase sempre é relacionado a um sentido revolucionário. Por outro lado, há um senso comum que vai dizer que o povo está ligado a tudo que é pejorativo, o que é menor. Essas duas divisões, não vamos esquecer, são ideológicas. Até aí tudo bem, afinal, ideologia é um fato e não um conteúdo. Ideológico não é só o nosso coleguinha de esquerda, mas qualquer um, e é na linguagem que a gente consegue identificar a ideologia.

O povo é sempre esse lugar, necessário, para a projeção do político. Por isso, pensar como o povo vem sendo significado em diferentes momentos históricos é pensar a sociedade.

Não só porque vivemos em uma sociedade desigual, mas sobretudo porque vivemos em uma sociedade desigual, os sentidos são dialéticos. O povo não tem um sentido, mas vários. Isso, porém, não quer dizer que cada um tem seu ponto de vista e povo é aquilo que “eu quiser”. Não. Há várias forças lutando para que o seu sentido predomine. Acontece que apenas essas forças não respondem por tudo, é preciso que elas tenham condições.

No atual momento político, as condições não parecem ser muito favoráveis para aqueles que pretendem um sentido revolucionário para o povo. Estamos vendo o esse sentido de povo ser pasteurizado e transformado em um nada, naquele lugar indesejado, naquele não lugar.

Pensar os sentidos de povo dialeticamente é importante para que possamos compreender a realidade, e não apenas interpretá-la. E a linguagem, nesse aspecto, é fundamental, tanto pelo seu poder simbólico, quanto pelo seu poder concreto, uma vez que ela materializa a disputa pelos sentidos, registrando no discurso a assimetria do mundo.

Como não há relação direta entre linguagem e mundo, para compreendermos “quem é o povo”, é preciso compreender a linguagem na relação com o imaginário, ou seja, do que se deve dizer e do que se precisa dizer, em condições imediatas, sociais e históricas.

Dessa maneira, podemos dizer que as palavras não têm um significado intransferível, mas que, ao contrário, os sentidos estão sempre à deriva. Resta saber quais sentidos de “povo” que estão funcionando de modo dominante em nossa sociedade, até para pensarmos o futuro político.

Afinal, o que é povo?

(*) Amanda Cotrim é Jornalista, professora de comunicação e mestre na área de Análise de Discurso pela Unicamp.

Fonte: Diálogos do Sul.

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