O morro do Vidigal é um clássico do Rio de Janeiro. A vista dá para Ipanema e a favela é pequena e relativamente segura. Há pousadas com diárias de até 200 reais por dia por pessoa. Nos últimos anos, festas bacanas passaram a atrair um público rico e descolado. Um hotel de luxo está sendo erguido.
Aos poucos, casas de um padrão mais alto estão sendo construídas. Artistas plásticos e gringos compraram imóveis ali. Os moradores recebem propostas atraentes e se mudam. Não são propostas milionárias. Apenas o suficiente para se transferirem para um lugar mais longe e um pouco — pouco — melhor. Os novos habitantes, aos poucos, impõem uma nova rotina e uma nova cara.
O que ocorre com o Vidigal é um processo de “gentrificação”, uma palavra horrenda, anglicismo não dicionarizado que deriva de “gentry” (o que é “de origem nobre”). Foi usada pela primeira vez para definir a mudança na paisagem urbana de San Francisco e de Toronto. E será cada vez mais ouvida.
No Vidigal, um ciclo de debates em torno dessa “ocupação” durou quatro dias. Há uma preocupação com relação a moradores que são despejados por causa de riscos de desabamento e recebem um “aluguel social” de 400 reais pagos pela prefeitura.
A gentrificação não é necessariamente ruim. Mas pode descaracterizar um bairro se for deixada nas mãos da especulação imobiliária e do crescimento desordenado. É uma discussão rica e que tende a se tornar cada vez mais barulhenta no Brasil, especialmente com as obras da Copa do Mundo e a remoção de comunidades para sabe-se lá onde.
Em janeiro, a revista New Yorker chamou o Itaquerão de “monumento à gentrificação”. De acordo com o jornalista Ben McGrath, a opulência do estádio contrasta com “a arruinada zona leste, onde grafites e lixo predominam”. No mundial da África do Sul, assentamentos foram criados para acomodar quem foi retirado das áreas de construção dos estádios.
Qual o limite entre o embelezamento, digamos, de um bairro e uma faxina étnica ou social?
O cineasta Spike Lee deu uma excelente resposta recentemente. Numa palestra no Brooklyn, onde foi criado e onde ambientou seu melhor filme, “Faça Coisa Certa”, Lee rebateu um artigo do New York Times que fazia a apologia da gentrificação. Para Lee, é a síndrome de Cristóvão Colombo. “Você não pode descobrir esse lugar”, diz. “Por que é preciso um influxo de brancos para que a infra-estrutura melhore?”
Eis alguns trechos de seu discurso:
Eu cresci aqui em Fort Greene. Eu cresci aqui em Nova York. A cidade mudou. E porque é preciso um influxo de nova-iorquinos brancos no sul do Bronx, em Harlem, em Bed Stuy, em Crown Heights para que a infraestrutura melhore? O lixo não era retirado todos os dias. A polícia não estava por perto. Quando você vê mães brancas empurrando seus bebês em carrinhos às 3 horas da manhã na 125th Street, isso tem que te dizer alguma coisa.
Aí vem a porra da síndrome de Cristóvão Colombo. Você não pode descobrir esse lugar. Nós já estávamos aqui. Você simplesmente não pode vir e se apropriar. Havia irmãos tocando tambores africanos em Mount Morris Park por 40 anos e agora não podem mais fazer isso porque os novos moradores dizem que os tambores são muito altos. Meu pai é um grande músico de jazz. Ele comprou uma casa em 1968, e a porra das pessoas que se mudaram para lá no ano passado chamaram a polícia por causa do meu pai. Ele nem sequer toca baixo elétrico! É acústico! Nós compramos a porra da casa em 1968 e agora você chama a polícia?
Você não pode fazer isso. Você não pode simplesmente entrar no bairro e começar a se apropriar e dizer, como se você fosse a porra do Colombo e matasse os índios americanos. Ou o que eles fazem no Brasil, o que fizeram com os povos indígenas. Você tem que vir com respeito. Há um código. Há pessoas.
Quero dizer, eles apenas se mudam para o bairro. Mas eles não podem simplesmente entrar assim. Eu sou a favor da democracia e de deixar todo mundo viver, mas você tem que ter um pouco de respeito. Você não pode simplesmente entrar, quando as pessoas têm uma cultura que tem sido criada por gerações, e você entra e agora a merda toda tem que mudar, porque você está aqui? Sai fora daqui. Você não pode fazer isso!
Então você está falando sobre a mudança do valor dos imóveis? Mas e as pessoas que estão pagando aluguel? Eles não podem pagar mais. Você não pode permitir isso. As pessoas querem viver em Fort Greene. As pessoas querem viver em Clinton Hill, no Lower East Side. Eles se mudam para Williamsburg. Eles não podem sequer bancar a porra de Williamsburg agora por causa dos mauricinhos.
Então, por que esperaram este grande afluxo de pessoas brancas para melhorarem as escolas? Por que há mais proteção policial em Bed Stuy e Harlem agora? Por que o lixo é recolhido com mais regularidade? Nós sempre estivemos aqui.
Então, para onde você vai? Para onde? Os porto-riquenhos dizem a mesma coisa. Um monte de gente disse ‘bom, vamos nos mudar para Bucks County. Ou voltar para Puerto Rico.’ As pessoas não podem mais se dar ao luxo de viver aqui.
Então, se Nova York não é mais acessível, a grande arte que temos aqui não vai mais estar aqui porque as pessoas não podem pagar para ficar.
Foto: Reprodução/DCM
Fonte: Diário do Centro do Mundo