O que as histórias nos ensinam

Vladimir Herzog foi assassinado nas dependências do Doi-Codi em 1975, durante o regime militar. Imagem: Instituto Vladimir Herzog.
Por Rogério Sottili.

Nos últimos meses, o Brasil tem convivido com tentativas de revisionismo histórico e relativizações das gravíssimas violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar que aterrorizou o país entre 1964 e 1985.

O cenário é ainda mais grave quando constatamos que, em grande parte das vezes, essas bravatas partem do presidente da República que, ao invés de atuar para consolidar e fortalecer a democracia, coloca em xeque o Estado nacional de direito.

O entendimento de que, durante a ditadura, agentes do Estado cometeram crimes contra a humanidade não é passível de revisão ou questionamento. Tanto é assim que, até o golpe parlamentar que destituiu Dilma Rousseff do poder em 2016, todos os presidentes desde a redemocratização adotaram medidas para garantir o direito à memória, à verdade e à justiça para toda a sociedade. Tratam-se, portanto, não de políticas de governo; mas sim de políticas de Estado, previstas inclusive na Constituição.

O maior exemplo disso é a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, em 1995; da Comissão de Anistia, em 2002; além, claro, da Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011 e que no final de 2014 entregou seu relatório com o resultado das investigações de violações de direitos humanos e recomendações para que este passado tenebroso nunca mais se repita.

Jair Bolsonaro, por sua vez, desde que entrou para a vida pública, minimiza a Constituição e afronta a democracia ao atacar essas instituições e tentar desmantelar todas as iniciativas de reparação às violações cometidas durante o regime militar. No entanto, as conquistas obtidas neste tema são irreversíveis. E, ao contrário do que deseja o presidente, os crimes contra a humanidade cometidos por agentes do Estado jamais serão esquecidos.

A tarefa incompleta de se consolidar e fortalecer a democracia é indissociável da necessidade de se garantir justiça a todos que sofreram com a violência perpetrada por agentes do poder público entre 1964 e 1985. O Brasil ainda deve respostas às vítimas da ditadura e a todos aqueles que, direta ou indiretamente, sofreram com prisões arbitrárias, sequestros, torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados que marcaram aquele período.

É fundamental, portanto, que o Estado e toda a sociedade civil se esforcem para difundir, em larga escala, conteúdos relativos à ditadura militar, reunindo informações de relevância que possam comunicar a complexidade e a intensidade dos fatos ocorridos, do ponto de vista político, social e cultural, e sob a perspectiva dos direitos humanos.

É nossa missão como nação fazer com que a História recente do país seja profundamente conhecida, para compreender seus reflexos nos dias de hoje e, assim, defender irrestritamente a democracia. Em outras palavras: é preciso conhecer o passado para entender o presente e construir o futuro.

Seguindo este princípio e, ainda, na tentativa de jogar luz na história, na vida e na obra de um personagem emblemático na luta contra a ditadura, os institutos Itaú Cultural e Vladimir Herzog promovem, a partir de agosto, a mostra Ocupação Vladimir Herzog, revelando facetas até então pouco conhecidas do jornalista brutalmente assassinado pelas forças de repressão que sustentavam o regime militar.

A história de Vladimir Herzog ficou conhecida de trás para frente. Primeiro, a versão oficial de um suposto suicídio. Depois, a denúncia da farsa pela família e por colegas jornalistas, desmascarada na sentença de um jovem juiz – Márcio José de Moraes, que, em plena ditadura, ousou condenar a União pela prisão ilegal, tortura e assassinato de Herzog.

Apesar disso, o atestado de óbito só foi retificado mais de 15 anos depois. A condenação internacional do Estado brasileiro, por parte do tribunal da Organização dos Estados Americanos, só veio em 2018. Entre idas e vindas, são 45 anos de perguntas não respondidas. Uma delas, em especial, causa intriga particular neste momento: quem é, afinal, Vladimir Herzog?

Quem era esse jornalista cujo assassinato repercutiu mundialmente, revelando a perversidade do regime militar? Onde estão os textos que ele editou e escreveu? Como foi sua vida? Quem era esse pai, esse amigo, esse companheiro? O amante das artes, o desbravador dos audiovisuais, o pescador, o profissional intrigado com as potencialidades educativas das novas tecnologias, o observador das estrelas, o sonhador – facetas ofuscadas por uma morte prematura.

Na intenção de começar a juntar as peças dispersas desse quebra-cabeças, a exposição traz ao público retalhos de sua vida e de seu legado transformador, e traz o retrato de uma época, apresentando-se como um projeto tanto biográfico quanto documental.

Graças à consolidação das políticas públicas de memória, verdade e justiça adotadas pelo Estado brasileiro desde o fim da ditadura, e às conquistas obtidas por essas iniciativas, hoje é possível revelar ao público esse intrigante mosaico de cores, memórias e afetos que compõem a trajetória interrompida de Vladimir Herzog e de tantos outros que sacrificaram as próprias vidas em defesa de um país mais justo e socialmente responsável.

Apesar disso, o Brasil ainda precisa fazer muito no que diz respeito ao resgate de sua história. O autoritarismo e a impunidade são marcas da nossa sociedade e se traduzem, no imaginário coletivo, na tolerância à violência de Estado e no eventual reconhecimento da legitimidade do uso desproporcional da força. É como se houvesse uma licença para matar sem que ninguém seja responsabilizado por isso. Não por acaso, em plena democracia, cidadãos convivem com ações policiais e intervenções militares que têm características muito semelhantes às dos aparatos de repressão da ditadura.

Sem o resgate dessa memória tão recente, ocultada por meio da sistemática censura imposta durante os anos de chumbo, o regime democrático não se fortalece. E é nosso dever atuar cotidianamente para que a democracia prospere.

Quem é Vladimir Herzog? Somos todos aqueles que não nos contentamos com injustiça e não aceitamos relativizações ou questionamentos das gravíssimas violações de direitos humanos que marcaram a história recente do país e, infelizmente, reverberam em nossa sociedade até os dias de hoje.

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