Por Cleyton Feitosa* no Justificando.
Embora distintos e complexos, democracia e representação política são conceitos bastante implicados na medida em que os regimes democráticos ocidentais tem buscado, por intermédio da representação, efetivar o governo do povo. A representação surge como mecanismo alternativo à impossibilidade de reunir, na sociedade de massas, todos os cidadãos e cidadãs para discutir e decidir sobre os diferentes interesses que circulam nas nações e comunidades.
No entanto, nos regimes democráticos, é cada vez mais perceptível a super-representação de segmentos e interesses em detrimento de outros sub-representados e excluídos das instituições representativas liberais. É possível dizer que trabalhadores/as, mulheres, população negra e lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), só para citar alguns segmentos, são obstados de ocupar espaços de poder tanto pela dinâmica da exclusão social quanto pelos filtros institucionais que tendem a agregar as desigualdades sociais na esfera pública e na política eleitoral.
Esse cenário desigual resulta não apenas em sistemas políticos anômalos, ineficientes e incapazes de responder aos anseios da população como em sentimentos de frustração coletiva com o funcionamento das nossas instituições, além da descrença na política como instrumento de transformação social, de mediação dos conflitos de interesses e de conquista de direitos.
Em face das instituições representativas estarem ocupadas basicamente por homens, ricos, brancos e heterossexuais que não representam a pluralidade e a diversidade de sujeitos, pensamentos e interesses do povo brasileiro, a luta política tem se dado por fora das instituições, nas ruas, em diferentes espaços públicos (e, por que não, na esfera privada), de diferentes maneiras. As paradas do Orgulho LGBT são demonstrações de um conjunto de pessoas que, sendo pouquíssimo representado pelas instituições democráticas, utilizam as ruas para vocalizar seus interesses e aspirações.
Mas, o que explicaria a ausência de LGBT nas instituições representativas liberais como o parlamento, por exemplo? Será que tal segmento não se interessa, não gosta e não “se lança” na política? Listo abaixo algumas hipóteses explicativas que conformam barreiras políticas que impedem e dificultam LGBT de representar seus interesses na arena política e, como extensão, potencializar a sua luta por mais cidadania, direitos e democracia:
- As assimetrias da democracia brasileira que privilegiam determinados grupos em detrimento de outros[1].
- O impacto de estruturas sociais excludentes sobre determinados grupos e segmentos que impossibilitam a participação ativa na política eleitoral[2][3].
- A predominância de uma cultura masculinizada – de cariz heterossexual – na esfera pública[4].
- A necessidade de três tipos de recursos – das quais nem todos possuem – para disputar cargos públicos: dinheiro, tempo livre e uma rede de contatos[5].
- O fato de a sexualidade, predominantemente heterossexual no imaginário social (não esqueçamos que uma das lutas do Movimento LGBT é também por visibilidade, portanto, da sua existência), ter sido historicamente tratada como uma dimensão da vida íntima e privada.
- A migração da sexualidade da esfera privada para a esfera pública ter se dado a partir de processos de normatização, disciplina e controle através de discursos científicos e religiosos enviesados[6].
- A configuração da política institucional se constituir como um campo (cada vez mais fechada em si mesma e autonomizada da população) permeada por um habitus (conjunto de práticas culturais que se aproxima de valores masculinos e viris)[7].
- Sobre as diferentes formas de capital[8]: a população LGBT – e a causa da contestação das hierarquias sexuais – não representa um capital político atrativo se comparado a causas mais gerais como a defesa da educação, da saúde ou da segurança ou mais específicas, mas que gozam de empatia e solidariedade social, como a defesa das pessoas com deficiência, por exemplo.
- As candidaturas LGBT passam pelo filtro dos partidos políticos que apresentam problemas de democracia interna, são liderados por homens cis-heterossexuais e, em muitos casos, não estão abertos à temáticas que escapam da antinomia capital x trabalho.
- A tensão entre representação descritiva e representação substantiva[9] é uma outra característica presente nas experiências de representação política de LGBT no Brasil. Os mandatos dos Deputados Federais Clodovil Hernandes (PTC – SP) ou do Vereador Fernando Holiday (DEM – SP), distantes das pautas do Movimento LGBT, e Jean Wyllys (PSOL – RJ), alinhado às agendas da militância, são exemplares dessa tensão.
- Como o campo político é pouco permeável às pautas e pessoas LGBT, há uma notória tendência do eleitorado em votar em candidatos que detém o perfil dominante da arena política, ou seja, masculina, burguesa, branca e heterossexual, mesmo entre o eleitorado LGBT. É importante notar que há esforços e iniciativas na direção de romper com essa cultura política como a PlataformaVote LGBTque aponta na direção da construção de um senso comunitário em que LGBT vote em LGBT.
- Esse conjunto de fatores e obstáculos operam diretamente na ausência de motivação e ambição política para que a população LGBT se lance na disputa eleitoral, assim como outros sujeitos e sujeitas discriminados socialmente. Sendo assim, não se trata de “não gostar” da política, mas sim de não ver nela um horizonte de possibilidades concretas alcançáveis.
Esse agrupamento de reflexões, que está longe de explicar todas as condicionantes que afastam LGBT da representação política, podem servir como notas iniciais para pensarmos políticas de inclusão na esfera política. Está mais do que na hora de partidos políticos investirem em alas LGBT e permitir o florescimento dessa agenda no interior de suas organizações. Cotas eleitorais também podem significar um importante mecanismo de correção do processo democrático.
Acredito que as políticas afirmativas de reconhecimento também devam ser exploradas e implementadas no Legislativo para não se restringirem apenas ao Executivo e seu poder limitado e vacilante[10]. Mas, antes de tudo, é necessário que o Movimento LGBT, por meio de suas inúmeras redes locais e nacionais paralelamente a instâncias decisórias como os conselhos e conferências, debatam internamente e acumulem posições e estratégias sobre a necessidade de investir, apostar e disputar os rumos da política institucional.
Cleyton Feitosa é doutorando em Ciência Política (UnB), Mestre em Direitos Humanos (UFPE) e licenciado em Pedagogia (UFPE – Campus Agreste).
[1] MIGUEL, Luis Felipe. Desigualdades e democracia: o debate da teoria política. São Paulo: Editora Unesp, 2016.
[2] PHILIPS, Anne. The politics of presence. Oxford: Oxford University Press, 1998.
[3] YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2002.
[4] FRASER, Nancy. “Rethinking the public sphere: a contribution to the critique of actually existing democracy”. In: CALHOUN, Craig (Org.). Habermas and the public sphere. The MIT Press, 1992.
[5] MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Práticas de gênero e carreiras políticas: vertentes explicativas. Revista Estudos Feministas, v. 18, p. 653-679, 2010.
[6] FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. 17 edição. São Paulo: Graal, 1988.
[7] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
[8] BOURDIEU, Pierre. “La Représentation Politique: Éléments pour une Théorie du Champ Politique”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 36-37, pp. 3-24, 1981.
[9] PITKIN, Hannah F. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1967.
[10] Por vacilante quero dizer que as políticas LGBT ficam ao sabor de governos simpatizantes à causa e correm o risco de serem vetadas por conjunturas e grupos adversos.
*Doutorando em Ciência Política
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Foto: The Amnesty International USA Blog
Fonte: Justificando.