Por Mauro Donato.
O cenário estava diferente e ameaçador desde o início. Quando a concentração dos manifestantes ainda mal começara, um cordão de policiais na Paulista não permitia que ninguém passasse. Por ali não se entrava nem saia da manifestação. Fosse você manifestante ou não. Mas já era um indício de que o plano da PM era não deixar o ato contra o aumento da tarifa no transporte público sair dali, do entorno da Praça do Ciclista.
Enquanto manifestantes podiam chegar pela rua da Consolação (único acesso), os outros três lados iam ficando cercados. Fechar o laço foi só uma questão de tempo. A manifestação quis andar e foi impedida. Nenhuma negociação vingava. O padre Julio Lancellotti buscou a dianteira para conversar, deu um passo a frente para argumentar sobre a falta de bom senso do que ocorria. O comandante levantou a palma da mão e foi curto e grosso: “Não adianta nem falar nada, não vão sair daqui”, demonstrando o quanto polícia e diálogo são incompatíveis.
Direito de ir e vir? Mais uma vez a polícia repetia a piada na qual ela própria fecha a rua para que os manifestantes não o façam.
Aquele cerco autoritário não poderia resultar em outra coisa senão em um ataque desnecessário e covarde. A partir daí foi um massacre. Uma versão atualizada do cordão de kettling fechou o laço ao mesmo tempo em que lançava bombas e dava tiros de balas de borracha. O pânico se espalhou. Uma senhora caiu e foi pisoteada assim como muitos alunos secundaristas ex-ocupantes de escolas que haviam sentado no chão. A massa ficou cercada naquele espaço e foi atacada por bombas e balas de borracha por todos os lados. Só depois de alguns minutos de intenso sadismo uma passagem foi liberada, quando duas pessoas ao meu lado já vomitavam. Muitas sangravam.
Na debandada pelas ruas da região, uma constatação assustadora. Viaturas da ROTA empenhadas na caça aos manifestantes. Sim, além dos blindados de R$ 5 milhões, da Tropa de Choque, da Tática, das Rocam e da exibicionista Tropa do Braço, também a ROTA. A Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, unidade de elite da PM mais que conhecida pela sua letalidade e por uma definição sinistra segundo ela própria: “Deus cria e a Rota mata” (dita aos gritos pelo operativo militar no dia do massacre no Carandiru).
O que a ROTA estava fazendo em uma manifestação? Ela não sabe lidar com esse tipo de evento, ela não tem meios ‘não violentos’ de atuação, não tem armas ‘não letais’. O armamento dela é para o confronto com criminosos armados, de igual pra igual. Se isso não é criminalizar o ato, então o que é? Um ato que, sempre bom lembrar, nem mesmo tinha saído do lugar.
A reação é óbvia: se você ataca gratuitamente a turba ela se enfurece e sai para todas as direções com consequências imprevisíveis. Sendo perseguida pela ROTA então o pavor domina qualquer um. Espera-se o tiro a qualquer momento. É por essas e por outras que a resistência feita por alguns manifestantes chamados de ‘mascarados’, de ‘vândalos’ se concretiza. Algumas manifestações são mais atacadas do que outras. Quem vai retardar o ímpeto da polícia no avanço contra aquelas pessoas desarmadas e indefesas?
No centro da cidade a repressão permanecia enfurecida muitas horas depois. Uma criança havia se perdido da mãe no meio da chuva indiscriminada e aleatória de bombas mas a tropa continuava soltando seus gases.
O saldo foi de 25 feridos encaminhados para o Hospital das Clínicas e 3 para a Santa Casa. Oito manifestantes detidos.
O Secretário da Segurança Pública, Alexandre de Moraes, disse que a PM usou a força porque os manifestantes “investiram contra os policiais para furar o bloqueio que impedia o acesso de manifestantes em trajeto não combinado” e, claro, não viu abuso.
O leitor deve estar mais que habituado a ouvir a expressão “terminou em confusão”, proferida pelos canais tradicionais. Não terminou, começou em confusão. E quem acendeu o pavio mais uma vez foi a turma fardada. É uma imensa covardia um grupamento militar atacar uma massa de civis desarmada. Mas para algumas pessoas isso não é abuso.
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Fonte: Diário do Centro do Mundo