O projeto desvairado de dolarização da economia argentina. Por José Álvaro Cardoso.

Foto: Getty Images

Por José Álvaro Cardoso.

          A inflação mensal da Argentina fechou o mês de maio em 4,2%, uma desaceleração em relação ao mês de abril, quando chegou a 8,8%. Segundo o Indec, (Instituto Nacional de Estatística e Censos) a inflação anual do país chegou em 276,4%, a mais elevada do mundo (de longe). O segundo lugar deste indesejado ranking, a Turquia, tem inflação anual inferior a 70%. O governo do país vizinho tem feito propaganda dessa desaceleração da variação de preços.

          Mas, o fenômeno decorre da queda dramática do poder aquisitivo da população. A economia Argentina, como de resto ocorre no mundo, é dominada pelos monopólios, boa parte internacionais. Mesmo com uma queda brutal das vendas no comércio, mesmo com as pessoas consumindo menos, as empresas aumentam os preços para manter suas margens de lucro. Se a tese dos neoliberais que estão no comando da economia Argentina (no governo, só Milei tem fantasias com o tal anarcocapitalismo) estivesse correta, ou seja, se a inflação decorresse de um excesso de demanda, os preços deveriam despencar imediatamente. Afinal, nos primeiros seis meses de governo o mercado consumidor interno diminuiu expressivamente, com o empobrecimento da população e com a quebradeira de pequenas e médias empresas.

          Qual o custo dessa desaceleração da inflação? Que, aliás, pode se interromper em junho, em decorrência de uma série de aumentos de produtos e serviços públicos, a começar pelo preço da gasolina, que aumentou no dia 1º deste mês. Os primeiros – e os mais importantes – custos são a fome e a pobreza. Segundo o Indec, a taxa de indigência saiu de 11,9%, no segundo trimestre do ano passado, para os atuais 18%. O salário-mínimo da Argentina atualmente é de $202.800 pesos (R$ 790 reais). O valor da aposentadoria mínima na Argentina, neste momento, é pouco mais de um salário-mínimo, $276.000 pesos. O salário médio dos trabalhadores está agora abaixo do nível de pobreza. Aliás, mais da metade da população está vivendo abaixo da linha da pobreza, maior índice em 20 anos na pesquisa do Indec. Esse indicador equivale a cerca de 27 milhões de pessoas nessa condição, em um país que se destaca pela grande produção agrícola.

          Outro custo fundamental é a recessão. Na comparação com março de 2023 a retração da atividade econômica alcançou 8,4%. Das 15 categorias econômicas da pesquisa, nove apresentaram recuo em março, Construção Civil caiu 29,9%. O Comércio atacadista e varejista também recuou 16,7%, na comparação anual, o que revela a gravidade do processo recessivo. A utilização da capacidade instalada na indústria em março foi de 53,4%, uma queda de 13,9 pontos percentuais em relação ao mesmo mês do ano passado. No ano passado o PIB da Argentina caiu 1,6% e a previsão do FMI é que a contração do PIB na Argentina chegue a 2,8% neste ano.

           Javier Milei se vangloria de estar fazendo superávit primário. Em março o governo argentino registrou um superávit trimestral de 275 bilhões de pesos no mês. Isso equivale a 1,6 bilhão de reais no trimestre. Para terem uma ideia do significado de um resultado desses, por trimestre o Brasil gasta com a dívida pública, numa conta simples, R$ 200 bilhões. Milei obteve um superávit primário modesto no primeiro trimestre à custa de demissões, não repasse de recursos para as províncias, e as custas da fome de milhões na Argentina, já que o governo não está repassando os recursos para os restaurantes populares. Além disso, o governo congelou as obras públicas, reduziu subsídios de energia e transporte para os consumidores e permitiu que a inflação corroesse salários e pensões públicas. Ou seja o “superávit” é absolutamente artificial e decorre exclusivamente do fato de que o governo não está pagando suas contas. Um esquema desses não para em pé.

          O Fundo Monetário Internacional (FMI), elogiou o governo argentino por estar fazendo um ajuste acima do combinado com o Fundo, ou seja, tem “superado” as metas do arrocho. Esse é um retrato preciso da realidade argentina nesse momento: enquanto o povo vai às ruas protestar contra a política econômica antinacional, e sofre uma brutal violência da polícia, que vai armada até os dentes, o FMI elogia o governo por ter feito acima do arrocho exigido. A Argentina tem uma dívida de US$ 44 bilhões com o FMI, contraída por Maurício Macri, em 2018 (o partido de Macri, o PRO, Proposta Republicana, apoia Milei). Essa dívida está no centro dos problemas da Argentina. O país tem apenas US$22 bilhões em reservas, o que é o Calcanhar de Aquiles da economia.

         Em economia, como na vida em geral, nada está tão ruim que não possa piorar muito. O governo tem anunciado medidas para liberar importações, supostamente para reduzir a inflação. Em março anunciou medidas que abriram as importações de produtos da cesta básica, suspendendo por 120 dias alguns impostos sobre as compras destes, supostamente para controlar a inflação. Tem também tomado medidas para retirar restrições ao mercado de câmbio, para impor, em um segundo momento, um sistema de livre concorrência.

         Abrir a economia retirando as alíquotas de importações, e restrições cambiais, são medidas conhecidas na América Latina há muito tempo, inclusive, com muito destaque, na Argentina. Se, por um lado, não há garantia de que a inflação irá ceder com as medidas, por outro, é certo que irão levar à falência as pequenas e médias empresas nacionais. Essas empresas não conseguirão concorrer com grandes multinacionais, que dispõem de elevada escala de produção, crédito mais barato e outros diferenciais. Inclusive políticos, porque o governo atual supera todos os limites conhecidos de subserviência de dirigentes de países subdesenvolvidos (Elon Musk, de olho vidrado no lítio argentino, que o diga).

           Basta ter bom senso para saber que, abrir as importações de produtos básicos, em meio a uma recessão brutal, com perda de poder aquisitivo das famílias e queda das vendas, vai quebrar pequenas e médias empresas nacionais. Claro que isso não irá ajudar a economia argentina. Mas também, quem disse que o objetivo da política econômica do governo argentino é esse?

          Retirar as restrições cambiais é uma conhecida prescrição do FMI que é passada para os países subdesenvolvidos desde, no mínimo, a década de 1980. A economia brasileira já foi monitorada pelo FMI e esta era uma receita do fundo para o Brasil: eliminar as restrições cambiais. Na realidade essa é uma prescrição do Fundo, passada para todas as economias subdesenvolvidas, em todos os quadrantes do planeta. Essa foi a receita para a Grécia, Chile, Equador, Brasil, Bolívia. Os planos “salvadores do FMI” são um baita “copia e cola”. O fato é que, se o Estado não intervier no mercado de câmbio (mercado de moedas), controlando a taxa de câmbio, através, por exemplo, de compra e venda de dólares, pode haver movimentos especulativos contra o país, por exemplo, fuga de capitais, como já ocorreu tantas vezes na América Latina.

          A Argentina, mesmo viveu isso recentemente. Em 2018, Maurício Macri teve que recorrer ao FMI em função de uma crise cambial, com fuga de capitais e desvalorização da moeda nacional. O FMI é sinônimo de péssimas lembranças para o povo argentino. A palavra vem sempre associada a catástrofes financeiras. Não se sabe ainda se a retirada das restrições cambiais seria uma preparação para dolarização da economia, ou se este seria apenas uma fantasia da campanha política de Milei, dentre muitas.

          Oxalá a luta popular, que agora parece estar engrossando, consiga barrar a realização dessa verdadeira loucura na economia argentina. A dolarização não existe em nenhuma economia importante do mundo. Atualmente, na América Latina, três países têm economias dolarizadas: Equador, El Salvador e Panamá. O PIB somado destes três países, equivale a 22% do PIB da Argentina. Os três países somados, possuem população equivalente a 6,2% da população da Argentina (45,2 milhões). Fora da América Latina, dois países tem o dólar como moeda: Zimbabwe (África) e Estados Federados da Micronésia, que na prática é uma colônia dos EUA na Oceania, com 112.000 habitantes.

          A Argentina é a terceira economia da América Latina, atrás apenas do Brasil e do México. Propor renunciar à moeda nacional, instrumento fundamental da macroeconomia, em favor da moeda do país mais imperialista do mundo, é a uma prova definitiva de insanidade mental. A tendência global é exatamente na direção contrária. Os países do Brics, por exemplo, estão gradativamente construindo as condições para realizarem transações entre si, com suas próprias moedas e não mais com dólar. China e Rússia já estão fazendo isso. Recentemente, no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, os representantes dos países, destacaram exatamente a importância dos membros do chamado Sul global, terem independência das moedas dos países ricos, e dos bancos dos países imperialistas, Banco Mundial, FMI e outros.

          No caso argentino tem um agravante. O governo não tem dólares, está há meses implorando empréstimos ao FMI para aumentar suas reservas. Como se conseguirá dolarizar uma economia que não dispõe de dólares?

José Álvaro Cardoso é economista do DIEESE em Santa Catarina.
A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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