O processo de limpeza étnica na Faixa de Gaza. Por José Álvaro Cardoso.

Por José Álvaro Cardoso.

“Eu sou pela transferência compulsória; não vejo nada imoral nela” (David Ben-Gurion, principal dirigente do movimento sionista entre 1920 e 1960, em junho de 1938.

Genocídio é melhor expressão do que está acontecendo na Faixa de Gaza, especialmente desde o dia 07 de outubro. Os sionistas estão fazendo todos os esforços para liquidar qualquer vestígio da existência dos palestinos naquela região, existência humana, institucional, cultural, política e religiosa. Passados seis meses da guerra já temos o registro de cerca de 34 mil pessoas mortas, a maioria mulheres e crianças. Além disso, são quase 70.000 feridos.

Como observou o chefe de relações políticas e internacionais do Hamas, Basem Naim, nessa guerra acontece uma coisa rara na história desse tipo de acontecimento: mulheres e crianças são mortas mais do que homens e os feridos são apenas o dobro dos mortos. Essa relação, geralmente é de 1 para 5, ou 1 para 6. Nesse caso, podemos falar de 1 para 2, o que reflete a agressividade dos sionistas, que querem atingir toda a sociedade.

O governo de Israel, quando fala em alvos militares está apenas fazendo propaganda para iludir a opinião pública internacional. Afinal, esse governo destruiu praticamente todos os hospitais, especialmente no norte da Faixa de Gaza e estão matando de propósito o pessoal da área médica. O ataque “cirúrgico” do governo de Israel já destruiu quase 80% das moradias, todas as universidades, a maioria das escolas, mesquitas e igrejas. Além disso, a infraestrutura da Faixa da Gaza, praticamente toda foi destruída, incluindo instalações de água, poços etc.

A tática de extermínio da população palestina, além de fazer uso de bombas e usar tanques, procura eliminar as pessoas pela fome e sede, não importando se são crianças, velhos ou mulheres. Por exemplo, estão bombardeando Rafah, que fica no Sul da Faixa de Gaza, para a qual a população se deslocou, após o início do conflito em outubro. Antes do conflito viviam em Rafah em torno de 250 mil pessoas, número que agora é 1,4 milhão de palestinos, boa parte que se refugiou após o início dos bombardeios. Os israelenses, desde o início do processo, vêm fazendo declarações que revelam que a limpeza étnica, ou seja, a expulsão de todos os palestinos da Faixa de Gaza. Um ministro do Governo Benjamin Netanyahu chegou a dizer em entrevista que o uso de uma bomba nuclear contra a Faixa de Gaza seria “uma opção”. Quando o jornalista perguntou a esse ministro, Amichay Eliyahu, do Patrimônio israelense, se isso não colocaria em risco a vida dos reféns israelenses, ele foi taxativo: “Em uma guerra, há um preço a pagar. Porque as vidas dos reféns (…) são mais importantes do que as dos nossos soldados?”

Os planos de expulsão dos palestinos da Faixa de Gaza valem para toda a Palestina. Segundo as autoridades do Hamas, cerca de 65% da Cisjordânia já foi confiscada pelos invasores. O ministro das finanças de Israel, Smotrich, tem declarado publicamente que os palestinos têm uma de duas opções: ir embora ou serem assassinados. Este cidadão apresentou em 2023 o mapa de Israel, incluindo o território da Jordânia, como parte do grande estado de “Israel”.

Se calcula que até o momento os sionistas já assassinaram mais de 15.000 crianças. Essa é uma consequência direta do ataque à moradias, escolas, hospitais e outras áreas na qual vivem os civis. Cerca de 75% dos habitantes de Gaza têm menos de 18 anos, isto é, são crianças. Portanto, o ataque aos alvos civis tem a intenção deliberada de atingir crianças, não é um efeito colateral da guerra ou porque o Hamas estaria usando crianças como escudo (acusação sórdida do governo israelense).

O “problema” demográfico está na raiz do comportamento do movimento sionista. Atualmente, no interior das fronteiras da Palestina histórica, do Rio Jordão ao Mar Vermelho, existem 7 milhões de judeus e mais de 7 milhões de palestinos. Além disso, há outros 7 milhões de palestinos no exterior, na chamada diáspora palestina, desde a Guerra árabe-israelense de 1948. Nesse quadro, tudo indica que os sionistas elegeram as crianças como alvo dos ataques na Faixa de Gaza. Chegara a invadir um hospital infantil Al-Rantisi, ocasião em que forçaram as famílias a deixarem bebês que estavam em incubadoras, para trás. Quando, depois de duas semanas, as famílias vieram para pegar os filhos, encontraram-nos mortos dentro das incubadoras.

A Faixa de Gaza é uma espécie de prisão a céu aberto, onde vivem cerca de 2.3 milhões de palestinos em uma pequena faixa de 360 quilômetros. Antes do início da guerra, a comida, remédios, e outros bens de primeira necessidade já eram controlados por Israel. Iniciado o conflito, as pessoas estão morrendo de fome e por infecções. Segundo os médicos de Gaza, tem milhares de pessoas afetadas por doenças infecciosas, que irão morrer se não houver cessar fogo e socorro internacional imediato.

Pode-se afirmar que não existe economia na faixa de Gaza. Antes de 7 de outubro, já 85% dos habitantes dependiam de ajuda alimentar internacional. Acima de 80% da população vivem abaixo da linha da pobreza e a taxa de desemprego em geral é de 50% (entre os jovens essa taxa chega a 65%). Faz parte da estratégia de expulsão dos palestinos, impedir qualquer possibilidade de florescimento de progresso econômico na Palestina.

Segundo dados da ONU, a partir de vários estudos, as características da ocupação impedem o povo palestino de se desenvolver, há toda uma política sistemática de esvaziamento da economia palestina. Por exemplo, confisco permanente de terras palestinas, água e outros recursos naturais; retirada crescente de espaço político; restrições à circulação de pessoas e bens; destruição de ativos e da base produtiva; expansão dos assentamentos israelenses; fragmentação dos mercados nacionais; segregação dos mercados internacionais; e dependência forçada da economia israelense. Além disso, ainda segunda a ONU, há um processo contínuo de “desagriculturação” e desindustrialização, que deformou a estrutura da economia palestina. Segundo o relatório da ONU, no período de 1975 a 2014, a participação do setor de bens comercializáveis – agricultura e indústria – no PIB caiu pela metade, de 37% para 18%, enquanto sua contribuição para o emprego diminuiu de 47% para 23%.

Nas sucessivas invasões da Cisjordânia e Faixa de Gaza, quando há o cessar-fogo, os soldados israelenses, na saída, vãos destruindo estabelecimentos, pequenas empresas perto das fronteiras, negócios muito pequenos e simples. Pequenos negócios que poderiam alguns postos de trabalho ou oportunidades de emprego para as pessoas dentro da Palestina. Tudo indica que não se trata de uma simples crueldade dos militares, mas parte componente da estratégia geral de limpeza étnica.

Segundo os palestinos, desde 2006 (18 anos), não houve nenhum dia em Gaza que tivesse tido eletricidade durante 24 horas seguidas. Sem energia elétrica não tem como alavancar a produção de riquezas, não tem como levantar nem mesmo uma pequena economia. O combustível também sempre foi controlado pelos israelenses, já antes do conflito. Agora não existe mesmo. Já antes do conflito, conexão com a internet, energia elétrica para as empresas, combustível para as estabelecimento, tudo estava totalmente racionado. Faz parte da política de dominação, liquidar a economia do povo palestino. Para o invasor, não pode haver geração de riqueza e renda, porque a população pode se reerguer. Portanto, tem que proibir a agricultura e a indústria, ou qualquer resquício de produção de riqueza, para manter os palestinos na condição de indigência, vivendo da caridade alheia.

A propaganda dos sionistas é a que eles estariam há dois mil anos naquela região da Palestina. Mas não há dados historiográficos que confirmem essa hipótese. Mesmo historiadores israelenses sérios destacam essa carência de dados históricos à respeito dessa suposta estada dos judeus na região, há dois mil anos. Os judeus formavam apenas uma tribo que havia, dentre muitas. Quando pesquisamos a história dos judeus, no período mais antigo, percebemos que é uma história mitológica, com base em narrativas bíblicas.

A Torá, o livro sagrado dos judeus, não é um livro de história. Os ensinamentos que compõem a Torá, teriam sido enviados por Deus à Moisés no alto do Monte Sinai, durante o êxodo do povo judeu, que teria acontecido entre 1300 e 1250 a.C. Na história oficial dos judeus, durante cerca de 400 anos, os hebreus (antepassados dos judeus) foram escravizados no Egito e, libertos com a ajuda de Moisés, peregrinaram no deserto em direção à Terra Prometida por Deus, onde construiriam sua nação, que se chamaria Israel. A Torá ou Bíblia Hebraica corresponde aos cinco primeiros livros do Pentateuco e constitui também a primeira grande parte da Bíblia Cristã, ou chamado de Antigo Testamento. Mas a Bíblia não é um livro de história, o Antigo Testamento é um livro de teologia, constitutivo das comunidades religiosas judaicas, depois da destruição do Primeiro Templo.

Segundo o historiador israelense, Shlomo Sand historiador, professor da Universidade de Tel-Aviv, foi somente a partir do século XIX que os historiadores sionistas começaram a ter uma visão nacional da Bíblia. O problema é que, como destaca o professor israelense, ao longo dos anos 1980, novas descobertas arqueológicas contradisseram a possibilidade de um grande êxodo no século XIII antes da nossa era. Da mesma forma, Moisés não poderia ter feito os hebreus saírem do Egito nem os ter conduzido à “terra prometida” pelo simples fato de que, naquela época, a região estava nas mãos dos próprios egípcios. As fontes são todas religiosas.

Netanyahu e outros sionistas vivem repetindo que o Estado de Israel é apenas dos judeus. Ou seja, é um Estado supremacista puro sangue, que coloca 25% da população na condição de cidadãos sem plenos direitos. Cidadãos de segunda classe. Em outras palavras, um etnocentrismo sem fronteiras, serve de desculpa para uma severa discriminação ao apelar para o mito da nação eterna, reconstituída para se reunir na “terra dos antepassados”. Não existe dados confiáveis se os judeus estiveram no Egito, não tem informações científicas sobre isso. Portanto, essa história de que os judeus estiveram na Palestina há 2000 anos, não é verdadeira, é uma mitologia. Essa mitologia visa justificar a sua tese política: a de que os judeus são o povo escolhido e têm direito ao território da Palestina, que é a tese que está por detrás do genocídio na Faixa de Gaza.

José Álvaro Cardoso é economista no DIEESE Santa Catarina.
A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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