O problema comunicacional da esquerda. Por Jorge Majfud

Imagem: La Política Online

Por Jorge Majfud | 21/02/2025.

Em 17 de fevereiro de 2025, dias antes da transferência presidencial no Uruguai, o jornal de Montevidéu El País publicou a manchete (o que fez com frequência nos últimos cinco anos): “Lacalle Pou encerra seu governo como o presidente mais bem avaliado da América do Sul, segundo uma consultoria argentina”.

O problema central não é a fiabilidade das sondagens de opinião, mas sim a criação de opinião pelos meios de comunicação dominantes, algo que tem sido amplamente estudado na academia norte-americana há mais de um século.

Com trágicas exceções, uma característica histórica do Uruguai tem sido a sua estabilidade. Um dos sucessos atribuídos ao governo cessante é o crescimento económico. Contudo, nos últimos anos, o PIB do Uruguai cresceu abaixo de países tão diferentes como o Peru, o Brasil, a Venezuela ou a República Dominicana. A um preço muito elevado: a dívida pública e as perdas do banco do Estado aumentaram. A pobreza infantil aumentou e o equilíbrio social, outra das características mais reconhecidas do país, foi desgastado, aumentando o fosso entre os ricos e o restante da população. A um crescimento do PIB per capita corresponde uma perda de rendimento para 90 por cento da população.

O Uruguai foi o país com o maior número de mortes per capita no mundo devido à pandemia (NYT, 14 de maio de 2021), mas o governo vendeu a “responsabilidade individual” como um sucesso retumbante. Embora tenha havido quatro por cento mais assassinatos em 2024 do que em 2019, o governo vendeu isso como uma redução bem-sucedida nos homicídios.

Como se esta realidade não bastasse para classificar o governo de Lacalle Pou como um fracasso, poderíamos acrescentar a mais longa lista de casos de corrupção desde a última ditadura:

O chefe da custódia presidencial e amigo próximo do presidente foi condenado por corrupção, clientelismo, tráfico de influência e má utilização de recursos estatais. Senadores e sindicalistas eram espionados por mercenários contratados por pessoas próximas ao presidente. A sua Ministra da Habitação (esposa do senador e líder do partido militarista Cabildo Abierto) deu acesso à moradia segundo sua conveniência pessoal. O presidente defendeu um de seus senadores mais antigos por ser seu amigo, até ser condenado por pedofilia e por usar recursos do Estado para sua prática cartorial durante anos.

Entretanto, o presidente da Câmara do seu partido comprou favores sexuais em troca de acesso ao governo local através de estágios. O Porto de Montevidéu foi privatizado. Foi registado um aumento do tráfico de drogas através deste e de outros pontos de entrada no país. Obrigou a Antel, a empresa estatal de telecomunicações, a permitir a utilização da sua fibra ótica, a melhor do continente, para que as empresas privadas concorram com a Antel. O seu ministro da Defesa comprou à Espanha aviões militares obsoletos por 22 milhões de euros, que nem sequer serviram para apagar incêndios florestais devido à inutilidade dos aviões. Concedeu contratos a empresas privadas sem licitação.

Houve também clientelismo político, contratação de militares reformados e cobranças inflacionadas em pelo menos um município do mesmo partido. Ele cedeu à pressão do lobby do fumo de Montepaz para flexibilizar as leis antitabagismo dos governos anteriores (uma queixa conseguiu reverter este benefício comercial) e facilitou empréstimos ilícitos a fazendeiros. Seus ministros mentiram no Parlamento quando foram questionados sobre a entrega de passaporte a um traficante de drogas preso em Dubai por usar passaporte paraguaio falso, sabendo que estavam fazendo um favor a um conhecido e perigoso traficante de drogas. Um jornalista amigo do presidente entrevistou o beneficiário para o seu programa de televisão, embora ele continue foragido e procurado pela Interpol. Em seguida, o presidente autorizou o envio de 450 quilos de peixe congelado dos Emirados Árabes Unidos por voo diplomático e em nome do seu chefe de segurança. Quando o peixe foi descoberto em processo de putrefação e um jornalista lhe perguntou “para que havia tanto peixe”, o presidente, com a sua típica obviedade e cinismo de um cavalheiro da classe alta, respondeu. “Para comê-lo.” Ele provavelmente também não sabia de nada além dessa história surreal. O procurador que reconheceu ter protegido o presidente de “uma matilha sem escrúpulos que tentou prejudicar a sua imagem” no processo de investigação de vários destes casos, pouco depois juntou-se à campanha eleitoral do partido do presidente.

O Financial Times de Londres classificou a série de escândalos envolvendo tráfico de drogas, espionagem política e corrupção como uma ameaça à “reputação do país como um farol de estabilidade na América Latina”. Outros jornais europeus e americanos publicaram a mesma coisa. O jornal espanhol El Mundo resumiu: “O oásis de tranquilidade política que normalmente é o Uruguai no convulsionado Cone Sul já não é tal.”

Foi o presidente mais caro da América Latina, com salário de 25 mil dólares mensais (o salário do presidente do Brasil é de 6,3 mil). O custo da residência presidencial que os presidentes anteriores se recusaram a ocupar ascendeu a 400.000 dólares anuais, sem incluir as viagens pagas pelo Estado à sua esposa, o que não é aplicável por lei, uma vez que no Uruguai não há primeira-dama.

Apesar do seu histórico de corrupção (ou pelo menos de ingenuidade), um instituto de pesquisas o define como o presidente com a melhor imagem do continente, de modo que a imprensa conservadora o vende como “o melhor presidente”. Talvez a imagem fosse o que de melhor ele tinha e cuidava, como a cara e obsessiva luta contra a calvície, as horas na academia, o gosto por selfies, surf e Harley Davidsons. Frequentemente passeava pela avenida principal de Montevidéu ou almoçava em restaurantes populares, uma antiga tradição de presidentes que não fala bem dele, mas de seus adversários e da sociedade. Uma antigo capital político uruguaio.

Agora, aqueles meios de comunicação que fizeram que um governo prenhe de corrupção e  fracasso aparecesse como as VIP Carmelitas Descalças farão o mesmo com qualquer governo que priorize a classe trabalhadora e o venderão como corrupção ou comunismo infiltrado. Qualquer tentativa de limitar o monopólio das empresas privadas da oligarquia será embalada, rotulada e vendida como uma ditadura.

El País, o jornal da ditadura e das elites latifundiárias no Uruguai, não é nada diferente do restante dos seus aliados de classe no continente há mais de um século. São os únicos que sobrevivem a todas as crises económicas e políticas. Os únicos que recebem o apoio de grandes empresas, nacionais e transnacionais, da CIA e dos seus dóceis governos locais, sejam de esquerda ou de direita. Vimos exemplos mais radicais e trágicos no restante do continente. Os corruptos são sempre aqueles líderes que ousam limitar o controle político das elites financeiras dos países.

Entende-se o que quero dizer com abordar o problema tradicional de comunicação dos governos populares? Bastaria garantir a independência cultural e jornalística através da independência económica de qualquer meio de comunicação social público ou privado, para que esses meios de comunicação se tornassem no objetivo a ser destruído.

Jorge Majfud é um escritor, romancista e ensaísta uruguaio, professor de Literatura Latino-americana na Universidade da Geórgia, Atlanta, EUA. Estudou arquitetura, graduando-se na Universidad de la República e é professor na Universidade de Jacksonville, Florida.

 

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