O Prêmio Nobel da Paz: A cólera dos deuses

Por Raul Longo.

Pedro Machado foi quem recordou a metáfora exata em “Aguirre – A Cólera dos Deuses”, do alemão Werner Herzog: uma das balsas de espanhóis em busca do Eldorado dá voltas sem conseguir escapar de um redemoinho amazônico. À margem, na outra embarcação se cogita entre possibilidades de salvamento e o abandono dos companheiros para o prosseguimento em busca do ouro.

“Uma discussão política” – Pedro fez questão de notar.

Sem dúvida! E a decisão é sintomática: a noite, enquanto os demais dormem, Aguirre alveja os que circulam no crítico movimento das águas. Sem mais motivos para atrasos os exploradores prosseguem até serem tolhidos, um a um, pelos agravos da selva.

Aguirre, último sobrevivente, imagina-se o único a desfrutar das riquezas com as quais os naturais do novo continente por muito tempo iludiram a ganância dos exploradores, enviando-os para os rincões mais terríveis das selvas e desertos. Dourados ou Eldorado são as palavras que denominam cidades e regiões do Canadá à Patagônia, marcando o rastro de por onde o desvario europeu extinguiu civilizações.

Finalizando a saga, delirando um poder maior do que Pizarro a quem servia e exterminou os Incas, maior do de Cortez, exterminador dos Astecas, maior até do que o do rei de Espanha; o germânico Klaus Kinski interpreta o delírio de Aguirre exultando-se: “Que grande traição!”

Em Fausto, outro alemão, Goethe, já havia traçado a mesma metáfora. Depois de firmar um pacto com Mefisto, o protagonista da história ordena a demolição do único abrigo domiciliar de um casal de velhos que o acolhera quando em dificuldades. Fausto não titubeia em desalojar seus protetores para a passagem de seu egoísmo e interesses.

No mesmo dia em que a imprensa internacional divulga o levantamento que aponta as dificuldades de sobrevivência de 72%, da população da Grécia; como Aguirre o Comitê Nobel da Noruega alveja portugueses, espanhóis, italianos e ¾ do povo que deu origem a cultura e civilização ocidental.

Não são as únicas vítimas dos faustos do capitalismo que hoje promove na Europa e na América do Norte a miserabilidade que em décadas recentes desalojou milhares de famílias, adolescentes e crianças por toda a América Latina e, na África, continua promovendo um dos maiores crimes da história da chamada civilização cristã. Mas a resolução do Comitê que em Oslo confere o principal Prêmio Nobel acaba de reafirmar o que há muito se vem questionando sobre essa instituição, outrora das poucas ainda conceituada.

Em 2009 o Comitê entregou o Nobel da Paz para o atual presidente dos Estados Unidos que assumira em janeiro daquele mesmo ano e sequer tivera tempo de realizar algo que o justificasse. Talvez a intenção tenha sido estimular o principiante, mas o discurso de agradecimento do afrodescendente Barack Obama decepcionou pelo velho diapasão de todos os que dirigiram sua branca e bélica nação, constituindo-se numa declaração de guerra ao mundo que não deixou dúvidas sobre quais os pactos assumidos pelas grandes potências do Hemisfério Norte.

Se na ocasião as palavras de Obama desprestigiaram a premiação a ele conferida, agora o Comitê Nobel da Noruega desqualifica a instituição do prêmio em si, provocando ainda maior repúdio a cada notícia sobre promoção de guerras para contrabando de pedras preciosas e tráfico de armas ou desesperos coletivos que levam muitos indivíduos ao suicídio, à venda de órgãos, a entrega de seus filhos para adoção ou para a prostituição. Multidões de desempregados, desalojados, famintos. Desesperados sem saída para o redemoinho provocado pelos planos de austeridade impostos pela União Europeia.

O português José Manuel Durão que preside a Comissão Executiva da União Europeia considerou a premiação uma grande honra. Durão que durante a Revolução dos Cravos se dizia socialista, em 2003 hospedou na Ilha Terceira do arquipélago dos Açores a George Bush, Tony Blair e o espanhol Aznar. Mais tarde a estes quatro juntou-se a quinta besta do atual apocalipse econômico: Berlusconi. E se deu a invasão do Iraque, apesar das advertências de Sadam Hussein profetizando que as mães do ocidente chorariam sangue.

Hussein também foi imposto aos iraquianos pelos mesmos que o mataram, na tentativa de atingir o Irã em represália à deposição de um dos mais cruéis entre os tiranos apoiados pelas nações capitalistas do ocidente: o xá Reza Pahlevi.

No governo de Ronald Reagan o episódio da guerra Iraque x Irã teve reflexos no outro lado do mundo, quando com o apoio de Israel a CIA furou o embargo de armas aos Aiatolás proposto pelo próprio Estados Unidos. O lucro obtido financiou a ação dos Contras que pretendiam derrubar o governo Sandinista, por sua vez também substituto de outra hereditária tirania aliada aos Estados Unidos: a dos Somoza, levados ao poder desde que marines invadiram a Nicarágua em 1912.

Com o apoio das corporações financeiras sionistas, Estados Unidos e Inglaterra de alguma forma vêm se equilibrando entre os efeitos da crise internacional, mal contendo o desemprego em massa e o aumento incontrolável do número de desabrigados. Mas essas grandes corporações sediadas no Reino Unido, na Holanda e Suíça não vêm razão de manter o malogro das pretensões dos demais consorciados ao encontro dos Açores.

E o que a Grécia tem a ver com isso tudo? Por que as nações europeias beneficiadas pela previdência de seus então presidentes Schröder e Chirac — quando se recusaram a participar da orgia neoliberal – cobram dos gregos os custos de uma Tróia que não invadiram? Por que esse presente de alemão?

Na Europa crescem as cogitações sobre informações não oficiais de existência de grande bacia de petróleo no Mar Egeu, a justificar as pressões de hoje para garantir futuras maiores participações na exploração de um provável Eldorado negro.

De fato, o Egeu fica logo acima da Líbia, onde há bem pouco, por traição de Berlusconi e outros dirigentes Europeus se executou Muammar Kadhafi, garantindo o fornecimento petrolífero à Europa. Mas ainda é Pedro Machado quem faz uma leitura mais ampla, considerando que não seja no petróleo do Oriente Médio, na mão de obra barata e no mercado de consumo do Extremo-Oriente, no ouro das Américas e nos diamantes de África onde se possa justificar a prepotência e desfaçatez da civilização ocidental e cristã que há meio milênio se expande em destruição do que há de humano no mundo.

Concordo com Pedro e concluo que à essa autofagia que ameaça a toda a humanidade e a si mesma, a civilização ocidental foi condenada pela cólera de seus deuses que não falam pela pena de Goethe, pela câmera de Herzog ou pela dramaticidade de Kinski. Mas pela boca de outra alemã que declara a resolução do Comitê Nobel da Noruega como “decisão maravilhosa”: a da chanceler Angela Merkel.

Foto:   Do filme Aguirre – A Cólera dos Deuses”, do alemão Werner Herzog.

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