Por Clarissa Dri.*
Sou professora há 15 anos. Pela primeira vez, sou nesse ano professora de um estudante indígena.
No meu cotidiano, presencio as mais diferentes formas de violência, pois lamentavelmente vivemos em uma sociedade violenta. Poderia dizer que a forma de violência que mais impacta minha vida é o machismo. Por causa da crença que apresenta as qualidades masculinas como superiores às qualidades femininas, sofri violência doméstica, assédio moral no trabalho, pessoas questionam minha seriedade quando não uso óculos ou camisa preta, pessoas me desrespeitam na rua e vozes mais grossas tentam interromper minha fala.
No entanto, há pouco tempo, meu filho começou a perguntar se existem indígenas no Brasil. Primeiro estranhei a pergunta, considerando que os indígenas estavam aqui antes do Brasil ser Brasil. Mas depois entendi: os povos originários são tão invisibilizados que meu filho não conhece nenhuma pessoa.
A francesa Dorothée de Linares, descendente do indígena carijó Içá-Mirim que viajou para a Normandia, esteve recentemente em São Francisco do Sul, terra provável de seu parente, e afirmou: “É uma situação dramática. Eles são invisíveis”. Felizmente essa história será contada em livro muito em breve.
No domingo 8 de outubro de 2023, no dia em que meu filho completou 5 anos, o governo catarinense atacou o povo Laklãnõ-Xokleng, na terra indígena Ibirama, com força policial. Parte da imprensa tem relatado sobre os “bastidores” desse evento absurdo. Não sei quais são as fontes dos jornalistas que trabalham para as grandes empresas de comunicação de Santa Catarina. Pessoas ligadas às instituições governamentais, talvez? Minhas fontes são estudantes indígenas e suas famílias. Precisamos romper com os silêncios, diria Djamila Ribeiro, e ouvir as vozes de todas as pessoas que viveram os acontecimentos.
Meu estudante viajou nesse final de semana para sua aldeia para participar das comemorações da vitória sobre o marco temporal, depois de ter assistido a esse momento histórico dentro do plenário do STF há poucas semanas. Parece incrível que um povo que habita essa terra desde sempre precise lutar para continuar nela. É o que aconteceu durante todo processo colonizador nas Américas e o que ainda acontece hoje, com os indígenas tendo que provar judicialmente que a terra é deles antes ou depois do mês de outubro de 1988, que deu ao Brasil o presente que é nossa Constituição.
Chegando na aldeia, no lugar da festa, encontrou muita chuva e uma negociação em andamento entre as lideranças de seu povo e representantes do governo catarinense determinados a fechar as comportas de uma barragem construída de forma autoritária durante a ditadura militar, desrespeitando o direito internacional dentro da terra indígena, e sem estudo de impacto ambiental. Na iminência do alagamento das casas, as lideranças indígenas pediam que fossem garantidos água e alimentos durante o isolamento, canoas e assistência médica para salvamento, e que os lares fossem reconstruídos em local seguro depois.
Aqui podemos nos perguntar: como qualquer ser humano reagiria na iminência do alagamento de seu bairro e sua casa? E se o governo eleito chegasse com a polícia para anunciar que obteve uma decisão judicial que autoriza o alagamento da sua casa para evitar que casas em outra cidade sejam alagadas? Os indígenas apenas pediram que as vidas fossem asseguradas, como pedem há mais de 500 anos.
Após uma noite inteira de negociações tensas, sem descanso e muito pressionado, o povo Laklãnõ liberou o acesso à barragem dentro de sua terra, tendo fechado o acordo que previa o atendimento dessas condições básicas. No momento da liberação da estrada, poucas pessoas ficaram por último e houve um desentendimento com as forças policiais. O grupo retornou para tentar libertar as pessoas que estavam sendo fortemente golpeadas, e a polícia então iniciou uma repressão desproporcional com balas de borracha e spray de pimenta sendo disparados contra pessoas idosas, mulheres, crianças, jovens, todos desarmados, resultando em pânico, desespero, duas pessoas sangrando, dezenas de pessoas passando mal, com ardência nos olhos e grande desolação. Um povo sendo aterrorizado pelo Estado.
Em 1533, o líder indígena Atahualpa, aprisionado, firmou um acordo com seus algozes europeus: trocaria a quantidade de prata que coubesse em sua cela pela sua liberdade. Os espanhóis concordaram, a prata foi entregue pelo povo indígena e o líder foi enforcado em Cajamarca.
A dor, a desilusão e o sofrimento são inerentes à natureza humana. A violência, ao contrário, coloca uma camada extra de angústia à experiência humana que pode e deve ser evitada. Viver com dor e viver com violência não são a mesma coisa.
Para uma mãe, não há nada pior do que ver seu filho sofrer violência. Para uma professora, nada pior do que ver seus estudantes nessa situação.
* Clarissa Dri é doutora em ciência política pela Universidade de Bordeaux, na França. É professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC e pesquisadora do Instituto Memória e Direitos Humanos.
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