O Perverso Narcisista quer te devorar; não a Esfinge. Por Flávio Carvalho.

Imagem: mohamed_hassan

Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.

Mirem-se no exemplo daquelas Mulheres de Atenas. Sofrem por seus maridos, orgulho e glória de Atenas” (Chico Buarque).

Era um momento de guerra (do Peloponeso).

Naquele tempo, no Templo de Delfos, o grego Pausanias atribuiu a Sócrates o aforismo mais importante da filosofia ocidental: Conhece-te a ti mesmo.

Durante séculos este aforismo foi considerado – principalmente pela instituição mais triunfante da história da humanidade (o catolicismo) – como o mais subversivo, mais revolucionário e, portanto, mais perigoso modo de pensar.

Não podemos esquecer que houve uma época que o conhecimento não poderia vir de dentro, era algo somente oferecido “pelo divino”.

Entretanto, a busca interior (curiosamente a origem da palavra Religare, de onde nasceu a palavra Religião, que antes tinha a ver com reconectar-se com a sua própria divindade; a que todos trazemos em si) sobreviveu àquela repressão. Persiste, vigente, ao longo do tempo, essa incessante busca.

Quem o teme? A quem interessa, hoje, a variante do Conhece-te a ti mesmo? A quem mais deveria interessar a sua mítica versão, Decifra-me ou te devoro?

Decifra-me ou te devoro é o também mítico (clássico!) Enigma da Esfinge. Um dos pilares da filosofia moderna.

Deveria interessar ao Homem (à humanidade). Digamos melhor, hoje em dia: à Mulher!

Jean-Charles Bouchoux, psiquiatra francês, vendeu mais de trezentos mil exemplares do seu livro mais famoso (Os Perversos Narcisistas), com base naquela mesma afirmação: a primeira coisa a fazer é observar-se e, contra os Perversos Narcisistas, tomar consciência.

Não hesita, Bouchoux, em afirmar que não inventou moda: está na base de Todas as filosofias orientais, não somente as ocidentais. Universal, portanto.

Mas, porque uma pessoa vítima da Síndrome da Mulher Maltratada deveria olhar-se pra dentro e não centrar-se na emblemática figura do maltratador? Como fazer isso, “pre-ocupar-se” mais com si mesma, sem aliviar o peso de quem deveria ser “tratado”, o maltratador? É o que tenta responder Bouchoux.

A última coisa que um maltratador espera de uma mulher maltratada é que ela se reconecte com si mesma. E fará de tudo para impedir que isso aconteça.

Porque a situação, sem dúvida, lhe beneficia, como maltratador.

O ser maltratador lhe exige uma pessoa a ser maltratada.

Façamos outra pergunta e assim caminharemos juntos a uma tentativa de melhor entendimento.

Porque demoramos tanto tempo para chegar às atuais evidências, empíricas e epistemológicas, de que a Violência Machista é uma das mais fortes bases de dominação entre seres humanos?

Mais forte no sentido de que transcende a dominação de classe, e provavelmente se iguala à questão racial. Lembremos que persiste, ele, o Machismo, mesmo entre “ricos e pobres” – embora com agravantes de desigualdade econômica e social. Lembremos que, enquanto a desigualdade entre os “mais ricos” e os “mais pobres” pode chegar a ser verificada numa escala de entre 99 e 1%, a existência de “negros e brancos” num país como o Brasil, em geral, pode ser de 51 a 49%; igual que a existência (binária, equivocada, cada vez mais superada, pelas teorias de desconstrução em relação ao gênero) de sociedades numericamente divididas quase por igual entre “mulheres e homens”.

Bouchoux e seus diversos seguidores pelo mundo, nos induzem a pensar em algo. Se fosse uma pessoa, a Violência Machista já se conhece, a si mesma e, portanto, sabe como se manter, tirar proveito e multiplicar-se ao longo dos anos. Uma das formas que mais utiliza para chegar até aqui é desconcertar, desorientar, desnortear o outro (melhor dizendo, A outra) por mais que ela esteja no seu caminho de autoconhecimento. E quanto mais ela esteja no seu processo de autoconhecimento. Conhecer-se empodera. E querer é poder. Tudo aquilo que um machista não deseja para a pessoa com quem convive.

No fundo, cada gesto machista é um ato de afirmação de poder.

Quem já ouviu a expressão Gaslighting compreenderá bem o que estamos querendo trazer à luz. Se interessar-se, estude-a.

Qual a “fórmula”, portanto, proposta por Bouchoux?

Escreveu outro livro, chamado Violência Invisível. Um excelente complemento.

Antes se falava muito dos chamados MicroMachismos. Porém, quanto mais analisados houvessem sido, concluía-se que seria muito melhor chamar de MacroMachismos (por sua expansão, variedade e capacidade de adaptar-se, como um vírus mutante, dos novos tempos). O que era Micro, por ser sutil, cotidiano, nos pequenos detalhes, configura uma verdadeira forma de olhar o Macro, como um praga social com nome: Patriarcado. O sistema de dominação patriarcal é a conjugação entre os MicroMachismos e aquilo que os torna MacroMachismos.

Estamos diante de um debate que revela-se muito atual, porque o escondiam debaixo daquela velha – e também perversa – expressão: “mas sempre foi assim!”.

É importante andar nessa linha tênue entre saber que, sim, foram se reproduzindo ao longo do (muito e muito) tempo; tanto quanto é fundamental saber que por mais tempo que tenham existido nunca é tarde para não deixar de (re)produzir-lhes.

Dou-te um exemplo. Sabe aquela estratégia do marido machista que, dentro de casa, se cala durante dias? Havia outro livro famoso, Homens são de Marte e Mulheres são de Vênus, que comparava ao fenômeno dA Caverna de Platão, como uma necessidade de reclusão masculina; como se as mulheres não tivessem a mesma necessidade. “Todo homem necessita o seu momento de acavernar-se”…

Recordo que, antigamente, a mulher era impelida a pensar que se tratava de uma mera fuga masculina, como uma boa estratégia para a relação. Como uma bondade do homem vitimizado (“é melhor mesmo que ele se cale; até para ver se assim se tranquiliza”). Pois Bouchoux caracteriza isto, na relação do casal, como a Violência do Silêncio. Não é um silêncio de mero recuo bonzinho. Possui a intenção de ferir o outro (melhor dizendo, A outra). É perverso, portanto. Não existe simplesmente por existir. Existe para fazer o mal à outra pessoa.

Eu me lembro de havê-la exercido – sim, eu mesmo – tanto quanto lembro do meu pai haver exercido com minha mãe (e da minha mãe tentar reproduzi-la, sem o mesmo êxito, com meu pai).

E aqui vamos nos encaminhando ao desfecho de ambos os livros do psiquiatra francês. De onde surgem, então, todas essas “merdas”?

Bouchoux criou uma expressão menos escatológica: Angústia de Fundo.

Por incrível que pareça, a história da psicanálise (Freud, principalmente; ou os seus principais discípulos – hoje estamos descobrindo que seria melhor dizer discípulAs) nos facilita a vida na hora de compreender e tentar dialogar sobre estes fenômenos.

Pois sabem de onde Bouchoux crê que se origina o que ele chama de Angústia de Fundo? Do Medo Infantil.

Conclusão.

Analisemos profundamente cada etapa das nossas vidas, antes da vida adulta, e encontraremos a raiz das nossas próprias angústias.

Enfim… O Perverso Narcisista, encarnado num machista maltratador (um pleonasmo?) será incapaz de dedicar-se – por mais hipócrita que tente mentir-se a si mesmo – a um processo de autoconhecimento. Disso já sabemos. A questão é o quanto ele, deliberadamente, intencionalmente, interessadamente, pode atrapalhar o processo alheio de autoconhecimento, da sua parceira ou parceiro.

Por isso, será importante encarar toda e qualquer provável solução por um equilíbrio entre alívio e autorresponsabilidade; não da pessoa maltratadora e sim da pessoa maltratada. Não é por outro motivo que o primeiro capítulo de Perverso Narcisista é sublinhar o próprio conceito de Perversão: o fazer mal.

O humanismo clássico é aquele que compreende que as pessoas, em geral, nascem para o bem. É a sociedade e a forma com que guiam a sua própria atitude que as pervertem, as pessoas. E assim iremos a uma obviedade que pode ser transformadora: o que perverte, pode reorientar para o bem. O que foi deformado pode sim, reformar-se (e até mesmo revolucionar-se). O que encaminhou-se para a perversão pode mudar para melhor. Porque sempre pode ficar melhor. Ou pior.

Com uma única condição: há que ser de dentro pra fora. Uma maltratada jamais deveria preocupar-se em recuperar ao maltratador. Já terá suficiente trabalho para conhecer-se ou reconhecer-se a si mesma. E por não ser perversa, por querer ser (ou por já ser) “boa pessoa”, é incapaz de uma perversão como a do maltratador.

E o que nos faz boas ou más pessoas? O que nos perverte?

Perguntar-se é um dos melhores caminhos do autoconhecimento.

E terminar um texto com pergunta é algo que me faz mais feliz.

Aquele abraço.

Barcelona, 14 de abril.

@1flaviocarvalho. @quixotemacunaima. Sociólogo e Escritor. Ex-dirigente sindical da CUT e ex Formador da Escola de Formação da CUT no Nordeste. Barcelona, 4 de fevereiro de 2022.

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