Por Marina Neto.
As palavras de Jean-Paul Sartre devem ecoar em todas as nossas mentes após a grotesca decisão da corte britânica de extraditar Julian Assange para os EUA, onde ele enfrentará “uma morte em vida”. Este é o seu castigo pelo crime por ter feito um jornalismo preciso, corajoso e vital para o mundo ao revelar crimes de guerra das potências ocidentais.
O erro judiciário é um termo inadequado nessas circunstâncias. A corte britânica levou apenas nove minutos no dia 10 de dezembro de 2021 para sustentar um recurso da defesa do governo norte-americano, contra a aceitação de um juiz de um tribunal distrital em janeiro de 2021.
Nos últimos 3 anos, acompanhamos as audiências de extradição de Julian Assange, fundador do WikiLeaks, em Londres. O governo dos Estados Unidos pôde apelar de uma decisão do tribunal de primeira instância que negou o pedido para extraditar Assange – na ótica do tribunal ele é inocente de um crime, mas, como a juíza Vanessa Baraitser concluiu em janeiro de 2021, a acusação de Assange e seu estado psicológico precário provavelmente vai se deteriorar mais ainda dadas as “condições severas” do sistema prisional desumano nos Estados Unidos, onde ele poderá, potencialmente, “fazer com que ele cometesse suicídio”.
Os Estados Unidos denunciaram Assange de 17 acusações sob a Lei de Espionagem e tentativa de invasão a um servidor do governo norte-americano, acusações que podem levá-lo à prisão por 175 anos.
Deterioração da justiça e da saúde de Julian Assange
Muitas testemunhas já examinaram e estudaram Assange e diagnosticaram seu autismo e sua síndrome de Asperger, e revelaram que ele já havia chegado a um ponto de cometer suicídio na prisão de Belmarsh – a Guantánamo do Reino Unido -, mas foram ignorados.
A recente confissão de um informante do FBI e fantoche da promotoria dos EUA, um fraudador e estelionatário em série, de que ele havia fabricado suas provas contra Assange foi ignorada. Além disso, a revelação de que a empresa de segurança espanhola na embaixada equatoriana em Londres, onde Assange havia recebido refúgio político, era uma frente da CIA que espionava os advogados, médicos e confidentes de Assange também foi ignorado. A mais recente divulgação de uma reportagem, reproduzida graficamente pelo advogado de defesa perante o tribunal superior em outubro, de que a CIA planejava assassinar Assange em Londres, também foi ignorada.
Cada uma dessas questões, como os advogados da defesa já afirmaram, foi suficiente por si só para que um juiz rejeite o caso montado contra Assange por um departamento de justiça em conluio com a elite política britânica. O estado de espírito de Assange, afirmou o advogado do Departamento de Justiça dos EUA James Lewis, não era mais do que uma “simulação” – um termo vitoriano arcaico usado para negar a própria existência de doença mental.
O caso chegou a um momento orwelliano quando, na minúscula embaixada equatoriana, Assange se sentiu forçado a sentar em um canto quando recebia visitas ou era entrevistado, sempre com um bloco de notas, tomando os cuidados necessários para proteger o que era escrito das onipresentes câmeras espalhadas pelo ambiente – instaladas, como sabemos agora, por um contratante da CIA.
“Vamos olhar para nós mesmos, se tivermos coragem, para ver o que está acontecendo”, escreveu Sartre escreveu no prefácio do livro Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon – um estudo clássico de como os povos colonizados, seduzidos e coagidos atendem às ordens dos poderosos.
Estabelecendo as bases com o WikiLeaks
Julian Assange é um editor e ciberativista que lançou o WikiLeaks em 2006. Seu objetivo era fornecer uma plataforma para que denunciantes anônimos fornecessem informações confidenciais. Alguns viam o WikiLeaks como viabilizador de um jornalismo confiável e transparente, enquanto outros o consideravam perigoso.
Assange recebeu vários prêmios jornalísticos de prestígio nos últimos anos. Os mais proeminentes são o Economist’s New Media Award em 2008 e o Martha Gellhorn Prize for Journalism em 2011. Este ano marca 15 anos de existência do WikiLeaks, e o reconhecimento de centenas de documentos publicados em conjunto com meios de comunicação pelo mundo. Assange afirmou em entrevista ao jornal alemão Spiegel em 2015:
O WikiLeaks é uma biblioteca gigantesca dos documentos mais secretos do mundo. Damos asilo a esses documentos, analisamos, divulgamos e obtemos mais. O WikiLeaks tem mais de 10 milhões de documentos e análises associadas agora.
Em julho de 2010, o WikiLeaks publicou Cablegate, um dos maiores vazamentos na história das Forças Armadas dos EUA, incluindo evidências de crimes de guerra e tortura. Na sequência, Julian Assange viu-se no centro de uma tempestade midiática, acusado de hackeamento e agressão sexual. Ele passou os 7 anos seguintes em asilo na embaixada equatoriana em Londres, com medo de ser extraditado para a Suécia e enfrentar as acusações de agressão sexual, de onde ele poderia ser extraditado para os EUA. Em 2019, Assange foi entregue à polícia britânica e, no mesmo dia, os EUA exigiram sua extradição. Hoje, como sabemos, o ativista poderá cumprir prisão perpétua por suposta “espionagem e fraude”.
Nesse ponto, Nils Melzer, relator especial da ONU sobre tortura, iniciou sua investigação sobre como os governos dos EUA e do Reino Unido estavam trabalhando juntos para garantir uma condenação. Suas descobertas são explosivas, revelando que Assange enfrentou graves e sistemáticas violações do devido processo legal, conluio e evidências manipuladas. Ele tem sido vítima de constante vigilância, difamação e ameaças. Melzer também reuniu evidências médicas consolidadas que provam que Assange sofreu tortura psicológica prolongada.
A investigação convincente de Melzer coloca o Reino Unido e o governo dos EUA sob Biden no banco dos réus, mostrando como, por meio de sigilo, impunidade e, crucialmente, indiferença pública, o poder descontrolado revela um sistema profundamente antidemocrático. Além disso, o caso Assange abre um precedente perigoso: uma vez que dizer a verdade se torna um crime, a censura e a tirania inevitavelmente se normalizam.
Caso politicamente motivado?
Em uma audiência no Tribunal de Magistrados de Westminster, em 20 de abril de 2022, a audiência que analisa pedidos de extradição autorizou que o caso fosse enviado à Ministra do Interior, Priti Patel. O fundador do WikiLeaks deve apelar ao Supremo Tribunal se ela aprovar sua extradição.
A Suprema Corte decidiu no mês passado que o caso de Assange não levanta questões legais sobre as garantias que os EUA deram ao Reino Unido sobre como ele provavelmente será tratado. Patel deve agora decidir se o pedido dos EUA por Assange atende às solicitações legais restantes – incluindo as garantias das condições de aprisionamento em segurança máxima.
Para diversos grupos de direitos humanos esse é um caso motivado politicamente. “Congratulamo-nos com o fato de Julian Assange não ser enviado para os EUA e que o tribunal reconheceu que, devido a seus problemas de saúde, ele estaria em risco de maus-tratos no sistema penitenciário dos EUA. Mas as acusações contra ele nunca deveriam ter acontecido”, disse Nils Muiznieks, diretor da Anistia Internacional para a Europa, em um comunicado após a decisão do tribunal do Reino Unido, no início de 2021.
As acusações são baseadas em uma lei antiga, a Lei de Espionagem de 1917. O atual pedido de extradição dos EUA para o Reino Unido é baseado na suposta violação dessa lei, colocando em perigo militares, funcionários de inteligência e informantes dos EUA por “revelar suas identidades”. A equipe de defesa de Assange argumenta que suas ações não são mais perigosas do que o jornalismo investigativo.
Em 2013, quatro anos antes da Casa Branca de Trump avançar para intensificar sua luta contra Assange, o governo Obama considerou acusá-lo com base na mesma lei de 1917. Eles, no entanto, não conseguiram encontrar provas concretas.
Outro problema legal foi a natureza das ações de Assange: se eles, ou qualquer publicação de documentos sensíveis constituíssem um crime, os EUA também teriam que processar as organizações midiáticas que seriam considerados cúmplices simplesmente por ter publicado qualquer coisa revelada pelo WikiLeaks.
Em 2019, o governo Trump queria avançar com o caso para contornar as limitações que os impediria de acusar Assange. De acordo com o estatuto, um indivíduo não pode ser julgado por um crime após um período pré-determinado (específico para o crime) desde que o incidente alegado fosse cometido pela primeira vez.
Conforme apresentado, as acusações de espionagem foram constatadas como frágeis. O precedente constantemente citado é o dos chamados Pentagon Papers, publicados pelo Washington Post e pelo New York Times em 1971, fornecidos pelo ex-analista militar da Guerra do Vietnã, Daniel Ellsberg. O Washington Post, que já ameaçou fechar as portas, depois que sua editora, Katharine Graham, tomou a decisão de “publicar e ser condenado”, foi visto na época por tomar uma decisão histórica que protege uma imprensa livre.
Alguém que divulga informações, que são condicionadas em sigilo, pode até cometer um crime, se o conteúdo não for de interesse público, mas, quem posteriormente divulga sua publicação não cometeu um crime, sobretudo se a divulgação pode ser considerada de interesse público. É uma distinção crucial que perdura até hoje em ambos os lados do Atlântico.
Esta é uma proteção vital para jornalistas investigativos em todos os lugares. Se o recebimento ou a publicação de informações secretas em si se tornar um crime, a balança terá mudado significativamente a favor dos poderes constituídos e contra o direito das pessoas de saberem o que os governos andam fazendo – e o direito, ou mesmo a obrigação, do jornalista de contá-las ao público.
Estes são todos os fatores que devemos ter em mente contra a extradição de Julian Assange para os EUA pelo Reino Unido. Mas a natureza notoriamente desigual do acordo de extradição facilita para o Reino Unido conceder pedidos de extradição dos EUA. Há também, é claro, a relação política e diplomática igualmente desigual entre os dois países, onde a recusa de extradição para Assange pode ser vista como um ato hostil. O precendete da extradição já é ruim, mas pode piorar ainda mais se ele for ser usado para ameaçar, coagir e punir jornalistas pelo fato de fazerem seu trabalho.
MARINA NETO é jornalista de dados e chefe de reportagem da revista o sabiá.