Por Rachel Gouveia Passos.
As eleições de 2022 foram marcadas pela disputa acirrada de projetos de sociedade que se colocam de maneira antagônica. Por um lado, encontra-se a extrema direita representada pelo Bolsonaro e seus apoiadores e, por outro, há uma grande frente em defesa da democracia, tendo na figura do Lula, sua grande liderança. Podemos afirmar que tivemos um processo eleitoral acirrado e com muita tensão e exaltação, levando a uma polarização da população.
Até a posse do presidente Lula teremos um processo de transição de governo, que precisa ser responsável e transparente, mas também lidaremos com as angústias e manifestações daqueles que não aceitaram a derrota do seu “mito”. Desde o dia seguinte da eleição, vemos inúmeras manifestações dos descontentes, seja fechando estradas, agredindo apoiadores do Lula ou fazendo apologia ao nazismo. Tais fatos demonstram que estamos diante de grandes desafios em um país que tem mais de quinhentas células nazista e o avanço da extrema direita.
Contudo, não é de hoje que não está sendo levado a sério os atos dos bolsonaristas. Além da ridicularização e deboche em relação as palavras e atitudes tomadas, ocorre a psiquiatrização da extrema direita. Ao longo do governo Bolsonaro tivemos diferentes falas alegando uma certa insanidade ou “loucura” do presidente, e, agora, vemos pessoas pedindo pela “intervenção psiquiátrica”.
É preciso problematizar que o que está sendo denominado de “loucura” precisa ser reconhecido como parte de um projeto de sociedade. A psiquiatria, no Brasil, sempre foi acionada como saber e poder para operar na efetivação de um projeto de nação. Inclusive, o manicômio serviu para aprisionar e torturar presos políticos. Nomear a extrema direita de “louca” apenas perpetua toda a lógica da destruição promovida pelo aparato manicomial e operada por um pensamento conservador. Logo, temos que reconhecer que uma parcela significativa da população brasileira, acredita que negros são inferiores, mulheres merecem ser estupradas, nordestinos só servem para servir, LGBTs devem ser curados e adolescentes negros devem ser mortos ou encarcerados.
O sofrimento e adoecimento psíquico não podem ser banalizados. Existem pessoas que necessitam de suporte diário de profissionais e equipamentos para poder gerir sua vida. Óbvio que há muito preconceito em relação ao tema e as pessoas identificadas como “loucas”. Tanto que a Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial buscam dialogar constantemente com a sociedade para poder desconstruir a noção de “loucura” e, afirmar, que o cuidado em saúde mental deve ser realizado em liberdade e garantido por políticas públicas para quem precisar.
Convocar uma intervenção psiquiátrica apenas demonstra que a democracia continua seletiva e poucos devem ser considerados cidadãos. A psiquiatrização da existência retirou dos considerados “doentes mentais” o direito de ser reconhecido como cidadão, uma vez que não respondem por si e são dotados de uma “desrazão”. Logo, o manicômio e seu aparto – a violência, o saber e poder médico, a internação e o isolamento – sempre fizeram parte da estratégia de intervenção para essa população. E sabem quem sempre esteve por lá? Os negros, as mulheres, os LGBTs, a população pobre e em situação de rua, ou seja, todos aqueles que a extrema direita rejeita e deseja o extermínio.
Portanto, é essa intervenção que se espera? Desejamos o patrulhamento da medicina psiquiátrica na vida da população? Distribuir remédio é o caminho? Dessa forma, apenas atualizamos o que criticamos. Talvez seja hora de termos muito cuidado para não cairmos na armadilha de banalizar a extrema direita. Não há sofrimento e adoecimento psíquico no bolsonarismo e, sim, disputa de imposição de projeto de sociedade. Não há graça nenhuma e muito menos adoecimento em um projeto que quer a perpetuação da destruição, da sujeição e da dominação. É, simplesmente, um equívoco pedirem intervenção psiquiátrica.