O papa e o nazismo

Augusto Buonicore**.

Este artigo não trata do atual pontífice, Bento XVI – apesar de ele ter sido membro da juventude hitlerista –, e nem da onda clerical reacionária que varre várias regiões do mundo, especialmente no Leste Europeu. Na Polônia, por exemplo, o Estado dá suas mãos à cúpula da igreja católica para ressuscitar o que de pior existe na tradição conservadora cristã: o anticomunismo, o antissemitismo, a homofobia e a misoginia.

Tratamos aqui de outro momento histórico, quando foram estabelecidas sombrias relações entre o papado e o nazifascismo. Talvez estas reflexões sobre o passado nos ajudem a elucidar os dramas do tempo presente. Este artigo utiliza amplamente as referências contidas no livro O papa de Hitler, do professor e jornalista liberal inglês John Cornwell.

O Tratado de Latrão: o papado e o fascismo italiano

Mussolini e representante do Vaticano assinam o Tratado de Latrão.

No ano de 1860 o Estado italiano, que caminhava para a unificação, se apoderou de todos os domínios do papa, menos Roma. A cidade continuava a ser protegida pelas tropas francesas de Napoleão III. Como resposta aos novos tempos de revolução, o papa Pio IX aprovou o documento Sílabo de erros (1864), denunciando os grandes malefícios da modernidade: a democracia, o socialismo, a maçonaria e o racionalismo.

Seguindo na trilha do reacionarismo clerical, em 1870, o Concílio Vaticano I estabeleceu o dogma da infalibilidade do Papa. Este, como legítimo representante de Deus na Terra, estaria imune aos erros humanos. No entanto, antes que o Concílio chegasse ao fim as tropas francesas foram obrigadas a abandonar Roma para defender sua própria capital, ameaçada pelos prussianos. Imediatamente o exército italiano entrou na cidade, unificando finalmente o país. Ao papado coube apenas o pequeno território: o Vaticano.

Pio IX recusou qualquer acordo com o governo italiano e pregou a abstenção política dos católicos – na prática, a pseudoabstenção se constituiria num apoio ativo às correntes mais reacionárias existentes na Itália e no mundo. As pazes entre o Vaticano e o Estado Italiano só voltou a ser estabelecida com a ascensão do fascismo ao poder em 1922.

Em fevereiro de 1929 o papa Pio XI firmou com Mussolini o Tratado de Latrão, através do qual o catolicismo tornava-se religião oficial e o Estado passava a aceitar os casamentos religiosos. A Santa Sé também expandiria sua soberania para outros prédios e igrejas de Roma, além do palácio de verão em Castel Gandolfo. O fascismo italiano ainda pagaria uma indenização equivalente a 85 milhões de dólares pelos territórios e propriedades expropriados durante o processo de unificação italiana. Assim, sem nenhuma dor na consciência, o santo padre pôde referir-se a Mussolini como “um homem enviado pela Providência”.

A partir do Tratado de Latrão, os católicos deveriam se abster de qualquer política autônoma que se contrapusesse ao governo fascista. A consequência imediata disso foi o fechamento do Partido Popular (católico) e o exílio de seus principais líderes. Enquanto o papa e os fascistas comemoravam o divino acordo, milhares de italianos, muitos deles católicos, padeciam sob torturas nas inóspitas prisões do regime.

Hitler, ainda sonhando com o poder, rejubilou-se com as boas novas vindas de Roma. Escreveu ele: “O fato de que a Igreja Católica chegou a um acordo com a Itália fascista (…) prova, além de qualquer dúvida, que o mundo das ideias fascistas é mais próximo do cristianismo do que o liberalismo judeu ou mesmo o marxismo ateu”. O Tratado de Latrão foi o primeiro torpedo dirigido contra os liberais e democratas católicos da Itália e da Alemanha.

Quando Mussolini invadiu a Etiópia, em 1935, o Vaticano não protestou e o alto clero italiano, sem amarras morais, exultou-se com a aventura colonialista. Um bispo declarou: “Ó Duce, a Itália hoje é fascista e os corações de todos italianos batem junto com o seu!”. E concluía: “A Nação está disposta a qualquer sacrifício que garanta o triunfo da paz e das civilizações romana e cristã”. Enquanto isso armas químicas caíam sobre as cabeças da indefesa população etíope.

O papa e a ascensão do nazismo

Em novembro de 1918 os operários alemães, seguindo o exemplo de seus camaradas russos, derrubaram o seu imperador e fundaram uma República Democrática, que chegou mesmo a se anunciar como uma República Socialista. Mas, a capitulação da direção do Partido Social-Democrata Alemão frustrou os sonhos dos revolucionários.

Em Munique um dos principais líderes revolucionários era o socialista Eisner que, em fevereiro de 1919, foi brutalmente assassinado por ativistas de extrema-direita. A resposta do governo socialista ao crime foi o endurecimento do jogo contra os grupos contrarrevolucionários, no qual se incluía a cúpula da igreja católica. Neste quadro conturbado o núncio papal Eugênio Pacelli, futuro papa Pio XII, foi obrigado a estabelecer delicadas negociações com o novo governo democrático e socialista.

Assim ele descreveu o seu primeiro encontro com os operários e as operárias socialistas: “A cena no palácio era indescritível (…) o prédio, outrora a residência de um rei, ressoava com gritos, uma linguagem vil e profana (…). No meio de tudo isso, um bando de mulheres, de aparência duvidosa, judias como todos ali, refastelava-se em todas as salas, como uma atitude devassa e sorrisos sugestivos. Quem mandava nessa turba feminina era a amante de Levien, uma jovem russa, judia e divorciada. Foi a ela que a Nunciatura teve de prestar sua homenagem, a fim de prosseguir sua missão”. O dirigente socialista Levien não lhe causou melhor impressão: era “russo e judeu”, “pálido, sujo, olhos de drogado, voz rouca, vulgar, repulsivo”. Assim a igreja católica – e o futuro papa – via os representantes do proletariado alemão.

No auge da República de Weimar, os católicos representavam ? da população alemã e tinham uma força política ainda maior. A Juventude Católica possuía mais de 1,5 milhões de membros e existiam 400 jornais católicos diários. O tradicional Partido de Centro Católico era o segundo maior do país, perdia apenas para o Partido Social-Democrata Alemão. Era nele que, até então, a grande burguesia desaguava seu dinheiro e voto contra o socialismo.

Após a grande crise do capitalismo de 1929, a Alemanha teve sua economia desorganizada. Aumentou a radicalização política. Visando a derrotar o movimento operário e socialista, a grande burguesia monopolista muda de aliado, abandona os católicos e passa a jogar todas as suas fichas nos nacional-socialistas, liderados por Hitler.

Já nas eleições de 1930, o Partido de Centro perdeu espaço para os nazistas, que passaram a ser a segunda força eleitoral. Naqueles dias eram duros os embates entre os centristas católicos e os nazistas. Vários padres, com anuência dos bispos, proibiam os nazistas de frequentar as igrejas enquanto fardados. No entanto, esta resistência estava prestes a desaparecer.

Sob a cabeça dos católicos liberais alemães, o Vaticano tecia sua pérfida trama. Em janeiro de 1933 Hitler assumiu o poder. Estavam dadas as condições para que se estabelecesse uma concordata com o Reich alemão do mesmo tipo que fora assinada com o governo fascista da Itália.

Para testar sua força, uma das primeiras medidas do governo nazista foi apresentar um projeto de Lei de Exceção, através do qual Hitler ficava autorizado a aprovar leis sem consultar o parlamento. Vários dirigentes do Partido de Centro resistiram em dar carta branca ao novo governo. Então o Vaticano entrou no jogo e pressionou para que eles votassem favoravelmente – pois esta era uma das condições para a assinatura da concordata. Apenas os socialistas e comunistas votaram contra essa lei de exceção. Estava aberto o caminho da ditadura nazista, com a benção de Roma.

Em julho daquele mesmo ano, Pacelli, em nome de Pio XI, assinou a concordata com o governo nazista. A partir de então a igreja católica e todas as suas organizações deveriam se afastar de qualquer ação política e social. Em troca o papado poderia impor suas leis canônicas a todos os católicos alemães, além de receber privilégios especiais para o clero e suas escolas.

Naquele mesmo mês, como aconteceu na Itália, o Partido Católico foi dissolvido e muitos de seus líderes seguiram o caminho do exílio. A repressão aos militantes católicos continuou duríssima, com espancamentos e internações em campos de concentração. Muitos acabaram sendo assassinados, ao lado dos comunistas e judeus.

Um ex-chanceler centro-católico chegou a afirmar que por trás daquela concordata estava Pacelli, que visualizava “um Estado autoritário e uma Igreja autoritária dirigida pela burocracia do Vaticano, os dois concluindo uma eterna aliança. Por esse motivo, os partidos parlamentares católicos (…) eram inconvenientes (…), sendo extintos sem qualquer arrependimento”. Portanto, não se tratava mais de barrar apenas o perigo comunista, e sim de abolir a própria democracia liberal.

Logo após a concordata, o Führer afirmou orgulhoso: “só se pode considerar isso como uma grande realização. A concordata proporcionará uma oportunidade à Alemanha e criará uma área de confiança bastante significativa na luta em desenvolvimentos contra o judaísmo internacional”. Continuou: “O fato de o Vaticano estar concluindo um tratado com a nova Alemanha significa o reconhecimento do Estado nacional-socialista pela Igreja Católica. Esse tratado comprova para o mundo inteiro, de maneira clara e inequívoca, que a insinuação de que o nacional-socialismo é hostil à religião não passa de uma mentira”. Todas as barreiras de ordem moral, que separavam nazistas e católicos, foram minadas pelo Vaticano.

O papa e o holocausto

Em abril de 1933 começaram as primeiras perseguições massivas contra a comunidade judaica, através do boicote a seus estabelecimentos comerciais e espancamentos de judeus por tropas das SA. A primeira resposta dos líderes máximos da igreja alemã foi: “Os judeus que ajudem a si próprios”. Sem dúvida, uma frase muito pouco cristã.

Durante a Guerra Civil na Espanha, em 1936, Hitler se encontrou com o Cardeal Faulhaber, de Munique. A pauta era a ameaça representada pelo comunismo. O próprio Cardeal daria suas impressões sobre o amistoso encontro com Sr. Hitler: “O Führer possui uma habilidade diplomática e social melhor do que um soberano nato (…). Não resta a menor dúvida de que o chanceler vive com a fé em Deus. Ele reconhece o cristianismo como base da cultura ocidental”. Em seguida elaborou uma carta pastoral que foi lida nas igrejas alemãs. Nela, ele pregava a cooperação entre católicos e nazistas contra o comunismo ateu e o judaísmo.

No final de 1938 estourou a violência contra a comunidade judaica. Numa única noite de novembro, conhecida como “a noite dos cristais”, mais de 800 judeus foram assassinados, 26 mil enviados para campos de concentração, centenas de sinagogas e estabelecimentos comerciais destruídos. Depois deste acontecimento fatídico, os judeus foram obrigados a portar a estrela de David em suas roupas.

Enquanto o holocausto judeu dava seus primeiros passos na Alemanha nazificada, Pacelli assumia o trono pontífice. Quatro dias depois escreveu a Hitler: “Ao ilustre Herr Adolf Hitler, Führer e Chanceler do Reich Alemão! No início do nosso pontificado, desejamos lhe assegurar que permanecemos devotados ao bem-estar do povo alemão confiado a sua liderança”. Nenhuma admoestação em relação à repressão contra os judeus e setores de oposição, dentre os quais se incluíam muitos católicos.

Quando Hitler e Mussolini invadiram a Iugoslávia, eles permitiram a criação de uma Croácia Independente sob o comando do líder fascista Ante Pavelic. Os croatas eram católicos e se consideravam arianos. Sob seu reinado de terror iniciou-se uma limpeza étnica na região. 487 mil sérvios, 30 mil judeus e 27 mil ciganos foram assassinados barbaramente por bandos fascistas. À frente deles, pasmem, estavam padres franciscanos. O Vaticano imediatamente reconheceu o novo Estado e Pio XII se referiu a ele como “posto avançado do cristianismo nos Bálcãs”. Uma das eminências pardas daquele regime de terror era o bispo Stepinac – que acabou sendo beatificado por João Paulo II em 1998.

Líder fascista Palevic aperta mão de bispo Stepinac

Em 1942 o papa já tinha todas as informações sobre o projeto de “Solução Final”, operação que visava a eliminar os judeus, ciganos e eslavos da Europa ocupada. Entre 1933 e 1944 mais de seis milhões de pessoas foram assassinadas em campos de extermínios nazistas. Depois de forte pressão das forças aliadas – e de muitos católicos e judeus –, Pio XII preparou uma homilia de Natal que visava a denunciar esta situação. Para decepção geral ela acabou sendo uma declaração inócua que nem ao menos teve a coragem de usar as palavras: judeu, genocídio e nazismo.

Em setembro de 1943, quando a própria Roma caiu sob a ocupação militar alemã, a “solução final” chegou às portas do Papa. Começou, então, o aprisionamento de judeus e oposicionistas. Caminhões carregando homens, mulheres e crianças percorriam as ruas vizinhas ao Vaticano. Muitas igrejas começaram a abrigar os judeus, especialmente os convertidos ao catolicismo. Mas, nenhuma conclamação pública foi feita para que os católicos se opusessem às deportações massivas e o massacre de milhares de cidadãos italianos.

Certo da boa vontade do papa, o embaixador alemão na Itália enviou para o seu chefe uma carta na qual afirmava: “O papa, embora sob pressão de todos os lados, não se permitiu ser levado a uma censura expressa da deportação dos judeus de Roma. Embora deva saber que tal atitude será usada contra ele por nossos adversários (…) mesmo assim o papa fez tudo o que era possível para não prejudicar as relações com o governo alemão”. Hitler ficaria muito grato ao santo padre.

Naqueles dias trágicos, a preocupação de Pio XII não era com as famílias deportadas, ou com a cidade ocupada pelos bárbaros nazistas, mas com os partisans que lutavam pela libertação da Itália. Temia que uma abrupta saída dos alemães pudesse deixar a cidade nas mãos da resistência comunista. “Os alemães, afirmou ele, pelo menos, haviam respeitado a cidade do Vaticano e as propriedades da Santa Sé em Roma”. A prataria e as pedras da velha cidade valiam mais que a vida de milhares de mulheres, crianças e velhos martirizados.

Em 23 de março de 1944 guerrilheiros atacaram um destacamento alemão e mataram 33 invasores. Este ato heroico foi duramente criticado pelo Vaticano e definido como terrorismo. A resposta alemã foi assassinar friamente 335 italianos. A Santa Sé simplesmente se lastimou pela execução de pessoas inocentes, “em lugar dos culpados”. Em outras palavras, o papa não se oporia se os fuzilados fossem os membros da resistência italiana.

O papa e a guerra-fria

Quando, finalmente, Roma foi libertada, o sumo pontífice enviou um singelo pedido, mui cristão, ao alto-comando das Forças Aliadas na Itália no qual dizia: “O papa espera que não haja soldados pretos entre as tropas aliadas que ficarão aquarteladas em Roma depois da ocupação”. Nazistas sim, soldados negros não. Neste caso a preocupação do santo papa não eram as propriedades do Vaticano, e sim a virgindade das moças e os filhos mestiços que pudessem ser gerados. A hecatombe universal não foi suficiente para remover os preconceitos raciais do representante de Deus na terra.

No imediato pós-guerra estabeleceu-se uma sólida aliança entre o Vaticano e o imperialismo estadunidense. O primeiro, e mais sombrio, resultado desta nova concordata, foi a cobertura dada à fuga de inúmeros criminosos de guerra nazistas para a América do Sul e os Estados Unidos. Afinal, eles ainda poderiam ser úteis na guerra santa contra o comunismo.

Milhões de dólares foram investidos na reorganização da Democracia Cristã, na Itália e na Alemanha. Desmontados para ajudar o nazifascismo, os partidos católicos agora eram reorganizados para derrotar a esquerda socialista. Em 1949, o papa determinou que os católicos não deveriam ser membros nem votar nos Partidos Comunistas. Os padres estavam autorizados a recusar os sacramentos a quem desobedecesse estas ordens. As ameaças de excomunhões se proliferaram por todo o mundo, inclusive no Brasil.

O mesmo Pacelli que advogou a colaboração de católicos e nazistas – ou o silêncio obsequioso em relação aos crimes destes últimos – agora passava a defender uma igreja politicamente ativa contra o comunismo; apoiando, inclusive, de maneira irresponsável, o martírio pessoal dos seus bispos no Leste Europeu.

O conservador Pio XII foi sucedido por três papas progressistas – João XXIII, Paulo VI e João Paulo I –, que procuraram estabelecer algum diálogo com o mundo socialista, incentivaram a teologia da libertação e defenderam certo ecumenismo. Mas, esta fase teve curtíssima duração: apenas de 1958 até 1978. João Paulo II retomou o ciclo conservador que agora tem no papa Bento XVI sua versão radicalizada. Dias difíceis esperavam os católicos progressistas do mundo.

* Artigo publicado originalmente no sítio Vermelho em abril de 2007.

** Augusto Buonicore é historiador e secretário-geral da Fundação Maurício Grabois, autor do livro Marxismo, história e revolução burguesa: encontros e desencontros.

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