O país das irmãs Mirabal se levanta contra o governo

Por Tali Feld Gleiser, República Dominicana, para Desacato.info.

Y hablo de paí­ses y de esperanzas,
Hablo por la vida, hablo por la nada,
Hablo de cambiar esta nuestra casa,
De cambiarla por cambiar, nomás

Fito Páez

Os protestos contra o atual governo e o papelão das eleições municipais de domingo 16 de fevereiro na República Dominicana aumentam a cada dia, especialmente por parte da juventude. Quatro horas depois de começada a votação, ela foi cancelada em todo o país. As urnas eletrônicas utilizadas somente nas principais cidades não funcionaram. Nos restantes distritos, de votação manual, não houve maiores problemas, mas sim muitas reclamações de por que não se continuava votando nesses setores. As eleições municipais se repertirão no dia 15 de março, com votação manual em todo o país. Não sei se tem antecedentes no mundo de algo assim.

O partido no poder, o Partido da Liberação Dominicana (PLD) leva 20 anos no governo (com uma interrupção 2000-2004). No ano passado, o ex-presidente do país e do PLD, Leonel Fernández (1996-2000 e 2004-2012) e vários de sus apoiadores saíram do partido após acusações à outra facção do PLD de fraude nas primárias em que resultou ganhador o empresário e ex-ministro de Obras Públicas Gonzalo Castillo, candidato da corrente no governo, o “danilismo” (pelo presidente atual do país Danilo Medina, eterno rival de Fernández). A corrente de Leonel aproveitou um partido nanico, o Partido dos Trabalhadores Dominicanos (PTD), que mudou até o nome para hospedar os novos “companheiros” e agora se chama Força do Povo. Subidos na onda dos protestos, eles tentam capitalizar a indignação generalizada para tirar vantagem, apesar de também serem responsáveis por muitas das políticas e a corrupção contra as quais a população reclama.

Além das municipais, tem eleições presidenciais em 17 de maio e o partido com mais chances de vencer é o Partido Revolucionário Moderno (PRM), divisão do histórico Partido Revolucionário Dominicano. O PRM já esteve no governo como PRD e a corrupção também foi a marca da sua gestão. Mesmo assim, as pesquisas os dão como vencedores com o empresário Luis Abinader, que se apresenta pela segunda vez como candidato a presidente. Nas eleições de 2016 perdeu para o atual presidente Medina.

Todos os partidos mencionados, o PLD, o PRD (ambos fundados pelo respeitadíssimo Juan Bosch) e o PRM se inscrevem dentro da socialdemocracia, sem nunca ter aplicado o Estado do bem-estar. O sistema da previdência social é similar ao chileno. O acesso à saúde se baseia principalmente em sistemas de seguros, apesar de a saúde pública existir. O emprego é precário e o maior símbolo de sucesso é virar um “Dominican York”, dominicano que mora em Nova Iorque (aqui sinônimo de Estados Unidos) e que, quando vem para a “meia ilha” age como o Poderoso Chefão em relação aos seus compatriotas sabendo da importância essencial das remessas que enviam todo mês. A maioria dos dominicanos que emigra volta ou quer voltar para seu país quando tiver uma situação financeira melhor.

Como na Pátria Grande, umas poucas famílias controlam a economia do país e esse governo, e os anteriores, trabalham mantendo o statu quo. Dominicana é um país rico e toda sua população poderia viver com dignidade. As políticas neoliberais, as longas ditaduras (Trujillo e Balaguer), instalaram a cultura da falta de respeito à gestão governamental, a aspiração de trabalhar no governo para virar rico (muito rico) com facilidade, especialmente através da superfaturação de qualquer ato de governo, desde a compra do café até a construção de pontes e estradas.

A República Dominicana é o país das irmãs Mirabal, especialmente Minerva; de Manolo Tavárez Justo, o Movimento 14 de Junho de combate à tirania de Rafael Trujillo (governou  durante 31 anos), os coronéis Francisco Caamaño e Rafael Fernández Domínguez, Amin Abel e milhares de homens e mulheres que deram a sua vida por um país justo. É um país de grande tradição de resistência, houve várias invasões dos Estados Unidos, a primeira foi a intervenção de 1916 a 1924, e a segunda, em 1965, após o golpe de Estado que derrubou o governo constitucional do professor Juan Bosch.

Escultura à irmãs Mirabal. Cidade de Santiago, República Dominicana. Foto: Tali Feld Gleiser

É necessário destacar que Dominicana já foi invadida pelo Haiti, no século XIX, muito depois da Espanha, é claro. Aproveitando esse fato histórico, a oligarquia local, os governos, a “embaixada” já sabem de que país, e até a Igreja católica, inventaram um inimigo, o povo haitiano que vem trabalhar em busca de uma vida melhor, numa mistura de aporofobia e racismo por não querer se identificar com a sua origem africana, a pele negra e a pobreza

E o que restou da esquerda nesse país? Pouco e nada. Se fragmentou em mil pedaços, e um partido quase progressista, a Aliança País, é quem mais tem crescido, mas com resultados praticamente inexpressivos. Parte dos comunistas dominicanos não se apresentam às eleições com o objetivo de desconhecer o sistema. São aqueles que melhores relações têm com a Pátria Grande, apesar de ter chamado Lula de corrupto. A Odebrecht também entrou aquí com força (e propinas ainda não esclarecidas) e essa esquerda não soube entender a Lava Jato no Brasil.

No próximo 27 de fevereiro, Dia da Independência, foi convocada a “Marcha do Milhão”, para continuar com os protestos contra o PLD e o pedido de renúncia de toda a Junta Central Eleitoral. A revolta continuará e o que se vislumbra é que só com fraude o PLD voltará ao governo da ilha do merengue e a bachata.

Tali Feld Gleiser é diretora geral do Portal Desacato.

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