Por Henriette Chacar.
O jornalista mexicano Gumaro Pérez Aguilando recebeu um tiro na cabeça enquanto assistia à apresentação de Natal de seu filho na última semana. Em outubro, um carro-bomba matou a jornalista maltesa Daphne Caruana Galizia enquanto dirigia perto de casa. No meio do ano, a jornalista sueca Kim Wall foi morta a facadas a bordo de um submarino quando fazia uma matéria sobre seu construtor, o inventor Peter Madsen, que está sendo acusado de assassiná-la.
Esses foram alguns dos 42 jornalistas mortos em razão de seu trabalho durante o ano de 2017, segundo um relatório divulgado no dia 30 de dezembro de 2017 pelo Comitê de Proteção aos Jornalistas (CPJ). O relatório também apontou uma proporção excepcional de mulheres nesse número.
“O que estamos vendo é uma deterioração de proporções globais no ambiente da liberdade de imprensa”, disse Courtney Radsch, diretora da área de defesa de direitos no CPJ.
Embora o número de assassinatos de jornalistas tenha se reduzido este ano, o de jornalistas presos em razão de seu trabalho atingiu um novo recorde, 262, a maior parte na Turquia, seguida pela China e pelo Egito. Radsch destacou que o número de jornalistas na cadeia por acusações de notícias falsas (“fake news”) mais do que dobrou. “Parece haver uma manifestação na vida real do discurso de ‘fake news’ que procura macular e deslegitimar o papel dos jornalistas e do jornalismo na sociedade, especialmente nas democracias”, disse ela.
“Parece haver uma manifestação na vida real do discurso de ‘fake news’ que procura denegrir e deslegitimar o papel dos jornalistas e do jornalismo na sociedade, especialmente nas democracias”, disse ela.
De forma semelhante a anos anteriores, 90% dos jornalistas assassinados eram locais, e muitos morreram em zonas de guerra. Embora no total haja menos mortes de jornalistas no Oriente Médio do que há alguns anos, o Iraque e a Síria foram os lugares mais letais para jornalistas em 2017. Foram mortos mais jornalistas no Iraque do que em qualquer outro país desde 1992, quando o CPJ começou a coletar registros detalhados. Na guerra do Iêmen, pelo menos dois jornalistas foram mortos em consequência de projéteis lançados pelas milícias dos houthis e de Saleh, e pelo menos mais dois jornalistas foram feridos em ataques aéreos da coalizão liderada pela Arábia Saudita.
O terceiro pior país foi o México, onde pelo menos seis pessoas morreram em decorrência de sua atividade jornalística. A lista inclui jornalistas de renome como Miroslava Breach e Javier Valdez Cárdenas. Segundo Radsch, as mortes dos repórteres mexicanos estavam ligadas, em regra, às coberturas que haviam feito sobre corrupção, cartéis de drogas e crime organizado, mas praticamente nenhum dos assassinos foi levado à justiça. “É a combinação dos assassinatos desenfreados com a impunidade endêmica que causa um efeito assustador no México”, ela acrescentou. (Outras organizações regisraram um número mais alto de jornalistas assassinados no México e no resto do mundo por seu trabalho, mas de acordo com Radsch o CJP só inclui casos em que a conexão com a atividade jornalística foi confirmada.)
Esse foi um ano especialmente letal para as mulheres. A média histórica de mulheres jornalistas mortas é de 7% do total, mas esse ano ela chegou a 19%. Uma das razões possíveis é que haja mais mulheres cobrindo editorias e regiões perigosas em relação aos anos anteriores, como entende Lauren Wolfe, jornalista investigativa e diretora do programa “Mulheres do Women’s Media Center [Centro de Mídia Feminina] Sob Cerco”.
Mulheres jornalistas enfrentam riscos específicos: elas estão, por exemplo, mais sujeitas a sofrer agressão sexual e assédio online do que seus colegas do sexo masculino. Wolfe disse que, com frequência, aqueles que deveriam proteger as jornalistas, como guardas e motoristas, podem representar a maior ameaça ao trabalho.
“Os tipos de ameaças que as mulheres enfrentam são igualmente insidiosas e ameaçadoras para a liberdade de imprensa.”
Embora o abuso sexual venha se mostrando, para as mulheres jornalistas, um dos maiores empecilhos à liberdade de imprensa, o CPJ não acompanha estatísticas sobre o assunto em seus relatórios anuais.
Para Elisa Lees Muñoz, diretora-executiva da International Women’s Media Foundation (Fundação Internacional das Mulheres na Mídia), essa é uma limitação. “Não é possível ter uma visão do todo quando são monitorados apenas homicídios, encarceramentos e processos judiciais, porque os tipos de ameaça que as mulheres enfrentam são igualmente insidiosas e ameaçadoras para a liberdade de imprensa”, disse Muñoz a The Intercept.
Radsch, do CPJ, explicou que o desafio de monitorar incidentes de abuso sexual é que, ao contrário dos encarceramentos e homicídos, eles não costumam ser presenciados externamente: quem sofreu o abuso é que precisa levá-lo a público.
Mesmo que o movimento #MeToo tenha trazido uma enxurrada de denúncias, as mulheres ainda são reticentes ao falar de suas experiências de agressão, por medo das potenciais repercussões. Uma delas é que a questão ainda representa um estigma cultural e profissional. Muñoz destacou como a violência com base em gênero pode levar as redações a adotarem uma abordagem paternalista, limitando as oportunidades de trabalho disponíveis para as mulheres e impedindo-as de progredir em suas carreiras num ritmo semelhante ao dos homens.
“Já vimos homens que foram encarcerados voltarem ao trabalho, já vimos homens que foram sequestrados aceitarem trabalhos em ambientes hostis. Isso não parece comprometer sua habilidade de voltar a cobrir esses locais, enquanto as mulheres são automaticamente tratadas como se tivesse sofrido algum tipo de dano e precisassem ser protegidas”, disse ela.
Boa parte do diálogo sobre gênero e liberdade de imprensa continua a tratar gênero como uma construção binária, e a focar apenas nas diferenças entre homens e mulheres. Além da distinção homem-mulher, o CPJ acrescentou uma categoria não binária ao seu banco de dados, mas até agora não há registros disponíveis sobre as experiências de jornalistas não cisgênero.
Tanto Wolfe quanto Muñoz sugeriram que contratar mais mulheres em altos cargos gerenciais seria uma forma de ajudar as redações a criar um ambiente mais seguro para mulheres jornalistas. Além disso, Muñoz entende que é preciso haver nas redações uma cultura focada na diversidade como um objetivo em si mesmo. “Isso precisa ser uma prioridade”, declarou. As redações deveriam “querer ter mulheres na atividade jornalística, para que elas possam dar uma diversidade de perspectivas”.
Tradução: Deborah Leão
Fonte: The Intercept Brasil