Por Cristina Santos.
Na quinta-feira, 21 de janeiro, a revista Veja do Grupo Abril colocou na capa da sua revista semanal, edição dedicada ao aniversário de 457 anos da cidade de São Paulo, uma frase que poderia ser confundida com um equívoco geográfico ou uma piada de mau gosto: “São Paulo, capital do nordeste”. A imagem não poderia ser mais caricata: cactos por todo lado, um fundo simulando uma parede de pau a pique e uma imagem extremamente saturada para forçar uma pele bronzeada.
Muitas das críticas que a matéria e a capa tiveram focaram bastante no caráter caricaturesco e numa ideia que tentam colocar como implícita – mas que está bastante escancarada – de que para ter sucesso o nordestino precisa ir para São Paulo. Outro elemento que chama bastante atenção é como fica notória a divisão racial dentro dos nordestinos “bem-sucedidos” para o grupo Abril: em uma região onde brancos são apenas 29% da população, na seleção da revista Veja brancos são quase a totalidade! Até mesmo o ator Thomás de Aquino – o pacote de Bacurau – parece ser branco na foto.
Mas o que realmente está implícito é o paradoxo que busca fazer entre a migração de hoje e de ontem, colocando que antigamente, os nordestinos iam para São Paulo para trabalhar; e nos dias de hoje vão para serem chefes. Nas palavras da revista “Os migrantes nordestinos do século XXI transformam a metrópole por meio da gastronomia, do design, de startups inovadoras e até da construção de prédios – mas, desta vez, no papel de donos das construtoras. A nova força do nordeste em São Paulo”. Nada novo, só mais uma mídia burguesa, vendendo a ideia de ascensão social por meio do “esforço individual”, característico de uma sociedade que tenta vender a meritocracia como um valor universal para esconder as profundas desigualdades das quais se alimenta. Desigualdades estas que se fincam profundamente em instigar o racismo, a xenofobia, o sexismo, a heteronormatividade.
O que a Veja não diz, é exatamente o peso da discriminação na manutenção do Status Quo da burguesia paulista. No Estado de São Paulo enquanto o total de postos de trabalho em 2008 eram ocupados em seu 45% por mulheres, as mesmas representavam 95,4% das que realizavam serviços domésticos, uma função precária, mal remunerada, e realizado por uma maioria de mulheres negras, muitas delas nordestinas ou descendentes de nordestinos que tiveram que migrar para São Paulo.
São Paulo é a terceira maior cidade da América e a 11ª do mundo! É bastante esperado que exerça uma força gravitacional não somente sobre populações do nordeste como em todas as regiões do país. Sendo uma cidade enorme, expressa todos os tipos de ofertas e de demandas, assim também como todo tipo de desigualdades. Fugindo de qualquer oposição entre norte e sul do país, que só serve para afirmar o poder da mesma classe dominante, teríamos que buscar entender por que uma mídia burguesa tenta vender que o que temos agora é um novo nordeste em São Paulo, um nordeste do empreendedorismo, das startups, dos restaurantes temáticos com cardápios assinados, como se hoje a oportunidade fosse ser empresário e não mais trabalhador, como era antigamente.
Isso não está separada de estarmos vivendo uma profunda crise econômica, onde o desemprego já atinge mais de 14 milhões de pessoas no nosso país, tendo a região nordeste como uma das mais afetadas, com um índice de desocupação de 17,8% enquanto a média nacional é de 14,2%; combinado com um governo de extrema direita, fruto do golpe institucional de 2016 que veio para cortar todos os direitos da classe trabalhadora que a correlação de forças permitisse. Reforma trabalhista, Reforma da Previdência, o desmonte de diversas normas regulamentadoras de segurança e saúde do trabalho; estão dentro do pacote de ataques do golpismo para acabar com os direitos dos trabalhadores e tentar impor uma nova relação de trabalho, ainda mais precário, uberizado, vendido como empreendedorismo.
Contudo, é evidente que as capitais do nordeste do país contam com um desenvolvimento expressivo, com diversos setores se estabelecendo na região, nas produções acadêmicas de algumas das melhores universidades do país como Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade Federal da Bahia, além de fortes polos industriais, como o Porto de Suape em Pernambuco e o Pecem no Ceará. Mas assim como numa grande metrópole, toda a riqueza produzida fica na mão de um punhado de parasitas burgueses.
Alimentar a xenofobia é parte de legitimar o desmonte dos direitos e salários, essencial para garantir lucros cada vez maiores para a burguesia. Valorizar o empreendedorismo é tentar esconder que quem constrói tudo que está ao nosso redor é a classe trabalhadora e que em São Paulo essa classe trabalhadora é composta por uma quantidade imensa de nordestinos e nordestinas e seus descendentes; e isso não é coisa do passado.
Da mesma forma, muito contrário de elevar o empreendedorismo, acho que para nós que estamos do lado oposto da trincheira da Veja e grupo Abril, fica a admiração pela poesia de João Cabral de Melo Neto, os versos e repentes de Patativa do Assaré, a força de Nise da Silveira que questionou toda a hegemonia da psiquiatria de seu tempo e foi pioneira de uma perspectiva da saúde mental humana e for fora dos muros das instituições psiquiátricas, de Chico Science e Nação Zumbi que popularizou o Maracatu e desenhou a cidade do Recife no imaginário de multidões, de Glauber Rocha reinventando o cinema e Paulo Freire reinventando a didática. Ficamos com os camponeses que se enfrentaram com a ditadura nas ligas camponesas; com os jangadeiros de Fortaleza, que em 1881 deflagaram uma greve que paralisou o porto de Fortaleza se negando a transportar pessoas escravizadas para os navios que os enviariam para o sul do país, fato que fomentou o abolicionismo e foi determinante para que a abolição no Ceará se desse 4 anos antes do restante do país, em 25 de março de 1884; são estes alguns dos exemplos sobre os quais nos apoiamos, ligando-os sempre à necessidade da luta estratégica contra o capitalismo, por uma sociedade sem classes.
Sabemos que não tem equívoco nenhum e infelizmente essa não é uma novidade ou algo que não se pode esperar de um veículo burguês como é a Veja do grupo Abril, que falam desde o ponto de vista dos que sempre marginalizaram os nordestinos e reduziram todo o conteúdo cultural da região em estereótipos. É um setor que precisa enfatizar um nordeste homogêneo e caricato para tentar esconder toda uma história de luta e insubordinação. São eles “os caretas”, aqueles que como escreveu Caetano na sua poesia “Quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo”.