Por Francieli Borges, Porto Alegre, para Desacato.info.
Existe uma altura em que a gente anda calejado – ou soberbo – do ofício, sabe mais ou menos o que esperar de um trabalho. Isso, dizem e eu até acredito, acontece com quase todas as profissões. É completamente ingênuo, mas vamos vivendo assim e julgando viver bem.
Graciliano Ramos, em um periódico sobre os escritos dos seus companheiros romancistas, comenta que o trabalho de escritor é como o de um sapateiro. Ele menciona que é importante desenvolver habilidades específicas para as tarefas, “da mesma forma que não podemos juntar pedaços de couro e razoavelmente compor um par de sapatos, se os nossos dedos bisonhos não conseguem manejar a faca, a sovela, o cordel e as ilhós”.
A minha profissão é ser leitora. Outras atividades tangenciam essa formação, mas o que faço é ler. Ler e entender. Ler e reler. Ler e comentar. Ler e desistir. Ler e discutir. Ler e traduzir. “E expostos à venda romance e calçado, muita gente considera o primeiro um objeto nobre e encolhe os ombros diante do segundo, coisa de somenos importância. Essa distinção é o preconceito. Se eu soubesse bater sola e grudar palmilha, estaria colando, martelando. Como não me habituei a semelhante gênero de trabalho, redijo umas linhas, que dentro de algumas horas serão pagas e irão transformar-se num par de sapatos bastante necessários”*, Graciliano conclui.
No entanto, por mais crentes, por mais satisfeitos que estejamos diante das engrenagens, alguns textos funcionam sob mutação – a nossa mutação. Alguma coisa fica vazia e vem a dificuldade de entender como passamos uma vida inteira pensando tão pouco. Foi assim: li Intérprete de Males para um projeto de oficina, e de repente, senti que pertencia simultaneamente a vários universos culturais diferentes. Em seguida, li O xará. Esses livros carregam a gente pela Índia, pelas situações de migração, de gênero; claro que essas são algumas das interpretações possíveis, as mais óbvias, corroboradas ou não pelas atitudes políticas da autora, Jhumpa Lahiri. Considerando muito menos a autoria do que a leitura, fica difícil não pensar nos refugiados; na nossa ideia tão frágil de nação; nos costumes artificiais que esbravejamos e reivindicamos nossos; nas pessoas que deixam tudo o que têm e que conhecem, vivendo sem nenhum contato, em um estado de perpétua expectativa. Muitas vezes já perguntei se a má vontade indesculpável dos brasileiros com os refugiados, principalmente se eles não forem europeus e brancos, e se a volta e ascensão de ideias xenofóbicas, se tudo isso não é o mais puro medo da perseverança desses estrangeiros, perseverança que os locais temem não possuir. Ou a evidência que nós podemos ser os refugiados de amanhã. É muito difícil deixar de associar impressões acerca do deslocamento, do desconforto, da sensação de falta de pertencimento e da saudade. Tais abismos ficam ainda piores porque a maioria da população parece alheia à condição intercultural de todas as coisas, por mais que estejam evidentes. Mas há outros tipos de choque. A obediência à padronização é tamanha que mesmo muitos nativos são vistos como os de fora, quando são justamente os povos originários. Essas narrativas escancararam algo que não é exatamente uma novidade: é como em cada país só coubesse um tipo de pessoa, é uma ideia de unidade superficial em vários níveis. É a lógica da autodeterminação deturpada, invertida.
Pode ser que os livros percorram direções completamente diferentes das que tomei aqui. Os meus trilhos, no entanto, foram esses: não cessei de pensar as fronteiras, as múltiplas identidades. Quero dizer, aconteceu algo que não previ: os textos acabaram, mas talvez eu nunca termine de lê-los.
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“Eliot, se eu começasse a gritar agora, com toda a força, será que vinha alguém?”
“O que houve, senhora Sen?”
“Não, não houve nada. Eu só queria saber se viria alguém.”
Eliot deu de ombros. “Talvez”**.
*Essas observações de Graciliano Ramos são encontradas no livro Garranchos, com organização de Thiago Mio Salla.
** Excerto de Intérprete de Males, de Jhumpa Lahiri.