Por Beatrice Papillon.
Corram e avisem os bombeiros para não moverem nenhuma tábua ou telha despencada! Não mexam nos destroços, nem sequer passem vassouras sobre as cinzas. Peçam à perícia que analise as causas do incêndio sem alterar a cena. Deixem tudo como está! É preciso preservar cada pedaço queimado desta história para a inauguração do primeiro “Museu da Destruição Nacional”.
Muitos povos fizeram memoriais das cinzas para contar suas tragédias. Assim os alemães construiram o memorial do holocausto. Em Nova York há um marco em memória das vítimas do World Trade Center. No mundo todo há museus que contam guerras, invasões bárbaras, escravidão, além de acervos arqueológicos que remontam os últimos dias de civilizações extintas, antes florescentes.
Assim também ali, na Quinta da Boa Vista, onde até ontem estava exposto o mais importante acervo museológico do Brasil, se contará das cinzas o que está acontecendo no país hoje. Os visitantes passearão por cima de escombros conhecendo de que modo destruiu-se muitos dos nossos melhores projetos. Futuras civilizações saberão pelos cacos que sobrarem dos nossos dias, o que fizemos de nós, do Brasil.
Cada salão será rebatizado com placas afixadas sobre os montes de madeiras e peças queimadas sinalizando os acontecimentos históricos que levaram a destruição do nosso sonhado desenvolvimento.
Haverá logo na entrada o Hall do Retrocesso, em que se verá, dispostos sobre os destroços os documentos oficiais e fotos dos momentos em que a democracia brasileira foi golpeada desde a proclamação da República. Pode-se usar também sobre as paredes queimadas projeções de vídeos com os votos de cada deputado no impeachment de Dilma Rousseff. Fiquem ali expostos os interesses e projetos que conspiram para a destruição do país.
Em seguida, o visitante deste novo museu, passará ao salão do Desmonte Científico. Os documentos das resoluções de cortes orçamentários nas áreas de educação, ciência e tecnologia estarão expostos junto aos dados sobre os impactos sociais e o retrocesso que causaram. Todas as reproduções de textos devem ser feitas em material impermeável, porque o telhado, como todo o resto, não será reconstruído. Tal qual a educação e a pesquisa brasileiras hoje, esta história ficará ao relento.
Onde antes havia documentos e peças que atestavam avanços sociológicos, crie-se a Galeria do Ódio e da Burrice. Estarão afixadas reproduções impressas de tweets e postagens sobre o projeto “Escola Sem Partido”, “ideologia de gênero”, discursos de ódio e declarações fascistas da extrema direita. Neste passeio fascinante os futuros visitantes perceberão como uma sociedade se empenhou arduamente para sua própria ruína.
No lugar do Trono de Daomé, doado pelo rei africano Adandozan em 1811, crie-se o Salão da Intolerância Religiosa. Aproveite-se a atmosfera criada pelo incêndio e reproduza-se ali o cenário de depredação de templos de religiões de matriz africana, como também a perseguição a seus sacerdotes e adeptos. Este setor pode contar com ambientação sonora em que se ouça canções gospel e discursos de pastores fundamentalistas evangélicos.
No Salão do Genocídio Indígena, para substituir as peças perdidas de acervo ameríndio, o visitante verá uma lista das tribos perseguidas e/ou dizimadas desde a chegada dos europeus até nossos dias. Mapas devem mostrar as demarcações de terras e a invasão de grileiros do agronegócio latifundiário.
No lugar dos fósseis de dinossauros, a Ala dos Novos Meteoros informará ao público sobre nossos projetos de devastação ambiental, desmatamentos e poluição das águas. Em projeções de vídeos, voarão pelas paredes as muitas aves já extintas da nossa fauna. Esta área deve conter especial menção ao desastre de Mariana.
No salão onde se assinou a Independência do Brasil, exponha-se os contratos de privatização das nossas empresas e da exploração dos nossos recursos naturais por estrangeiros. É o Hall do Entreguismo. Emoldure-se artigos de jornal que desqualificaram a Petrobrás, a Eletrobrás, os Correios, a Vale do Rio Doce, as telefônicas, em campanhas de sabotagem e difamação da importância de fortalecimento do Estado.
Por fim, onde antes estava Luzia, o fóssil humano mais antigo das Américas, a mulher que era nosso mais remoto vestígio de humanidade, exponha-se o descaso e a exclusão a que hoje está submetido o povo brasileiro. Mostremos sem dó aos visitantes o que estamos fazendo com a nossa gente. A mortalidade infantil, a violência contra as mulheres, o extermínio da população negra, o massacre contra LGBTs, a volta da fome nos sertões e periferias. Sugere-se ainda que se deposite em salão amplo os cadáveres de civis e militares mortos na guerra do Estado versus crime organizado, para que suas ossadas empilhadas dêem dimensão do saldo de morte obtido com políticas antidrogas e de criminalização dos pobres.
Que o “Museu da Destruição Nacional” cumpra sua função de catalogação histórica a partir destes restos do incêndio para informar às próximas civilizações sobre como um povo, com vocação inegável para o desenvolvimento e a felicidade, pode sucumbir sob golpes perpetrados por inimigos de seu próprio meio.
Fortaleza, 3/09/18 Beatrice Papillon é drag, esquerdista e colunista do GGN