Por Elaine Tavares.
O país inteiro ainda está em choque com a morte, em um acidente aéreo, de toda uma equipe de futebol, mais 21 trabalhadores da comunicação. Uma tragédia sem igual que colocou todas as bandeiras a meio pau. Uma comoção que tocou a todos, menos aos senadores da república. Num dia de luto nacional, o Senado, espaço inútil da política, decidiu votar a PEC 55, que congela os gastos públicos por 20 anos. Foi um ato simbólico visto que a decisão já tinha sido acertada em mais um jantar regado a bons vinhos na casa do presidente do país, Michel Temer, tal qual aconteceu antes da votação na Câmara dos Deputados.
O dia foi surreal. Conforme já tinha sido organizado, os trabalhadores seguiram para Brasília para acompanhar a votação. A maioria, tocada pela tragédia do avião da Chapecoense, acreditava que tudo seria adiado. Mas não foi. A sessão foi confirmada e os discursos se seguiram, com voto a voto acompanhando a posição do relator pela aprovação da emenda constitucional. Dos 75 senadores presentes, apenas 14 votaram seguindo os desejos das gentes. Disseram não à PEC da morte. Não compactuariam com uma decisão que provocará a destruição de muito mais vidas do que se pode supor. 61 disseram sim, e comemoraram.
Do lado de fora, os trabalhadores, estudantes, populares, indígenas, faziam seu protesto, esperando serem ouvidos pelos senadores. Uma ilusão. O jantar com o presidente já definira a votação. A PEC passaria, desse o que desse. E assim foi. Diante da força popular em frente ao Congresso, o poder agiu. Polícia, repressão, bombas, balas de borracha, pancadaria. A polícia, como sempre, iniciando os tumultos. E quando o povo reage, vem a mídia comercial e grita: “baderneiros, baderneiros”. A história se repetindo, infinitamente.
Um carro foi queimado. Horror dos horrores. Um carro. Já as milhares de vidas que queimarão no inferno da falta de saúde e educação, essas não tem qualquer valor. E tanto não têm valor que, enquanto as pessoas eram violentamente agredidas do lado de fora, dentro do Congresso, os senadores e seus amigos lobistas, confraternizavam num coquetel. Uma imagem para marcar a história. Mas, a que circula nos jornais e na TV é a do carro queimando.
O papel da PEC
A PEC da morte é a receita tradicional para manter o lucro dos bancos internacionais, que dominam o mundo desde os anos 1970, do século XX, quando começou a se consolidar a financeirização da vida. Até ali os industriais eram os que comandavam as coisas, afinal eram os que garantiam – via o trabalho não pago aos trabalhadores – a riqueza da pequena casta de 1% da população mundial. Mas, a partir dessa data, o capital se desloca da produção e se assenta na especulação bancária. Os bancos passam a comandar a vida.
Hoje, as mesmas pessoas que dirigem os bancos são as que dirigem as indústrias, a comunicação e os estados. Tudo está ligado. Não é sem razão que a tendência tem sido eleger, para governar os países, estados e municípios, pessoas aparentemente sem ligação com a política. São gestores, empresários, pessoas de negócio. Isso porque o estado tem de ser mantido como uma empresa, conectado visceralmente aos interesses desse capital especulativo. Os governantes não representam as populações, eles representam os interesses desse 1% de pessoas que comandam o capital.
No Brasil, o golpe foi armado justamente para isso. A presidente Dilma aplicava as receitas prescritas pelo sistema de poder mundial, mas ainda “vacilava” em algumas áreas, concedendo algumas migalhas para a população. Só que a turma do poder não quer mais sequer dividir as migalhas. Querem consumir tudo. Aos pobres, nada, a não ser a posição de sempre, que é a de produzir a riqueza, e sem reclamar. Alguns, que talvez não entendam o funcionamento do sistema, chegam a ideias mais exóticas, como a do publicitário brasileiro Nizan Guanaes, que aconselhou ao presidente Temer fazer “todas as maldades de uma só vez”. Alguma coisa assim como a dizer mate logo os pobres, antes que eles virem zumbis e passem a atormentar o poder. Um estúpido. Acaso não sabe que são os trabalhadores que garantem a ele sua riqueza. Sem os pobres trabalhando nas galés, como ele viveria?
Temer é um gerente do sistema bancário mundial. Por isso está fazendo o que faz. A PEC da morte congela os gastos públicos por 20 anos, mas não interfere em nada no pagamento da dívida, que é formada por papéis e que unicamente engorda aos bancos. Esse pagamento dos juros da dívida não está limitado. O que será estrangulado são os recursos para a saúde, educação, moradia, segurança, setores que configuram direitos das gentes.
É que para o estado bancário não existem mais direitos. Isso é coisa do passado. Agora, o sistema capitalista tem pouca margem de expansão. Já ocupou todos os territórios da terra. Avançou sobre a África, a Ásia, a América-Latina. Já definiu geograficamente quem produz o que, e como todos precisam ficar eternamente endividados para que a roda gire e os bancos sigam engordando.
Então, se não existe mais espaço físico no planeta para a expansão do capital, para onde ele pode ir? Fácil! Se é o trabalhador o que produz a riqueza real, a única saída para o capital é avançar no corpo do humano. Por isso os bancos estão acabando com o estado de bem estar social nos países centrais, e estão acabando coma previdência pública nos estados periféricos. É preciso que as pessoas trabalhem mais tempo. Assim, a medicina, que está a serviço do sistema, encontra formas de prolongar a vida, e a pessoa vive mais. Se vive mais é bom para o sistema, porque significa que ela pode gerar riqueza por muito mais tempo. Sendo assim, espicha-se a idade da aposentadoria. É uma questão matemática. Ah, a sabedoria do poder.
É justamente essa conta simples que faz com que a nova conformação de poder no mundo insista na tomada do estado. Os dirigentes, que mais atuam como CEO (siga em inglês para a figura do diretor executivo) assumem o estado justamente para garantir que seja legalizada a superexploração do trabalho. Esse é o papel do Temer e essa é a função da PEC da morte. Não é sem razão que a próxima ação do governo seja a reforma trabalhista. Com ela, acabará a regulação, serão perdidos direitos, a aposentadoria será estendida, prevalecerá o negociado. Será o golpe perfeito. O terreno está arado e preparado para essa nova forma de exploração, capitaneada pelos bancos. Os trabalhadores trabalharão mais tempo, terão jornadas mais longas, e produzirão muito mais rápido por conta da modernização do maquinário. Com isso, perderão saúde, perderão vida, perderão direitos.
O estado liberal clássico está morto. Não existe mais a “res publica”.
Por isso que os trabalhadores precisam organizar o ataque. Há tempos que estão apenas na resistência, ainda atordoados com os novos tempos. É preciso estudar em profundidade a nova cara do capitalismo e encontrar as armas para combatê-lo.
O horizonte apontado por Karl Marx aos trabalhadores foi esse. Entender como funciona “a oficina escura do capital” e avançar para a destruição desse sistema que é promotor da morte da maioria. É nesse sentido que nunca foi tão necessário assumir a defesa da ditadura do proletariado. É a única saída para a maioria da população diante da voracidade do sistema capitalista, hoje comandando pelos bancos multinacionais. Ou os trabalhadores assumem o comando desse barco ou o processo de exploração de aprofundará. Isso está claro nas decisões que estão sendo tomadas por todos os governos do mundo.
O avanço do capitalismo se dá sobre nossos corpos. É tempo de usá-los para o bem comum e não para o enriquecimento dessa pequena parcela de 1% que vive sobre nossos escombros.
Ontem, em Brasília, dez mil corpos enfrentaram a repressão. Esse exército precisa crescer. E, para desespero de Nizan Guanaes, não deverá ser um exército de zumbis, que não sentem, nem reagem ao golpe. Terá de ser uma vaga de trabalhadoras e trabalhadores dispostos a tomar nas mãos os seus destinos. Uma luta de massas, coletiva e consciente de que só o povo organizado e certo do que quer pode vencer.
Há um longo trabalho a fazer, mas é preciso começar.
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Fonte: Iela.