Por Moisés Mendes em Extra Classe.
Eram bons os tempos em que avós de hoje, temerosos diante dos netos desprotegidos do século 21, eram os jovens do século 20 alertados para que ficassem longe do Camelo.
O Camelo não era um bicho, era o apelido do grandão do colégio. O repetente, o esperto, o cara que já tinha bigode numa turma de adolescentes.
O Camelo era o sujeito que poderia desencaminhar as crianças. Poderia ter muitos outros apelidos, mas o sentido era esse: o Camelo, o grandão, o cara das maldades e espertezas.
Adiós, ficou no século 20 o Camelo presencial, analógico, misturado a colegas mais jovens, ingênuos ou considerados mais trouxas.
Hoje eles têm outros apelidos, alguns em inglês, e não ensinam ninguém a colar, a dizer palavrão e a matar aula.
Ensinam a matar gente. São os Camelos do mundo virtual. Das plataformas e sites frequentados por adolescentes e também por crianças.
A seguir, dois exemplos que frequentam a todo momento reportagens sobre o submundo da internet.
O primeiro exemplo. Quem já ouviu falar da True Crime Comunity, a TCC. É essa mesma a tradução: uma comunidade de crimes reais.
Um espaço virtual onde jovens trocam informações sobre crimes e bandidos verdadeiros, que existem.
Fazem reuniões on-line para que um conte aos outros o que sabe sobre fatos violentos. O apelo é levar o amigo a sentir fascínio pela morte e pelos criminosos.
A pesquisadora Michele Prado, da Universidade de São Paulo, está certa de que a TCC tem relação direta com crimes nas escolas.
Dos nove envolvidos em ataques violentos em colégios no ano passado no Brasil, seis frequentavam a TCC e sites similares. O submundo on-line está formando e treinando gente ruim e bandidos mirins.
Outro exemplo. A Discord, plataforma de ‘mídia social’ frequentada por jogadores de videogames, vem contribuindo para a disseminação do discurso do ódio e de ações violentas.
A Discord proporciona conversas em textos e áudios. É um chat, mas não é chat qualquer. É popular entre a gurizada e abriga todo tipo de gente.
O jornal Nexo publicou reportagem recente em que denuncia a presença de conversas sobre discriminação, homofobia, nazismo e até incitação ao suicídio.
O Nexo entrou em grupos em que há conversas sobre estuprar e matar mulheres. Em que compartilham vídeos da Ku Klux Klan e mostram imagens de pessoas negras sendo mortas.
Todos os gamers são violentos? Claro que não. Mas os jogadores frequentam lugares que pregam a violência, a discriminação e o racismo. É a turma do século 21.
As turmas dos velhos tempos, que existiam em todos os colégios e bairros, agora estão no vasto mundo virtual.
Não se reúnem nos pátios ou nas esquinas, mas em qualquer parte, juntando gente de todo lado. E são mais violentas, mais perigosas, mais assustadoras.
O tímido que não conseguia se entrosar no colégio e que aderia à turma do Camelo, como tentativa de se livrar do bullying e do isolamento, é muitas vezes o mesmo guri que hoje tenta se enturmar na TCC ou na Discord.
É o sentimento de pertencimento, que atrai os fortes e os fracos e os mistura a gangues em que o foco é muitas vezes mais do que a violência, é mesmo a morte.
O Unicef pesquisou anos atrás a dimensão do bullying entre os jovens e chegou a esse número que assusta: mais de um terço deles, de 30 países, relatou ter sofrido algum tipo de humilhação on-line.
Se não aderirem ao grupo do Camelo do mundo virtual, se não se comportarem como um deles, crianças e adolescentes serão discriminados, humilhados e considerados fracos.
Os vistos como frágeis, os retraídos e os esnobados estão, com essas e outras definições semelhantes, entre os que mais cometem atos violentos. Em qualquer lugar.
O Camelo, o forte, o líder, o sabichão, não tem o perfil médio do autor de violências. Ele é o que atrai e se cerca de quem pode vir a ser violento.
É o que sabem e contam os professores, colegas, vizinhos e parentes de crianças e adolescentes envolvidos em crimes e atentados.
O Nexo identificou participantes de conversas on-line que se identificam como bolsonaristas e prometem matar conhecidos porque são gays.
O Camelo malandrão do século 20 se assustaria com o mundo dos valentões do século 21.
E o que fazem as grandes corporações donas das redes sociais? Nada. O que devem fazer as escolas, os professores, as famílias, as comunidades?
Tratar do assunto em voz alta, em salas de aula e em reuniões com quem pode ajudar a conter o que se passa nesses ambientes.
As redes vivem da audiência desses grupos. O fascismo se retroalimenta do fascínio que a morte transmite a crianças e adolescentes inseguros.
É preciso conter o Camelo da morte, que pode estar, como figura real e não só virtual, mais perto do que se imagina.