“O mesmo fogo”: crianças condenadas ao silêncio. Entrevista exclusiva com Jorge Majfud.

Um indivíduo reproduz basicamente as esperanças e os medos ancestrais de seus ancestrais como se fossem algo novo.

Arte de capa: Tali Feld Gleiser

Redação.- Os e as que ultrapassam os 50 anos de vida vivenciaram, total ou parcialmente, longos períodos de ditaduras brutais, canalhas, delinquenciais, em toda América Latina e Caribe, a Pátria Grande. Corpos torturados, desaparecidos, queimados, jogados de aviões. A democracia sequestrada e o medo estampado nos olhos. Um presente mutilado que não tinha direito sequer a pensar em um futuro qualquer.

A ficção foi se irmanando com a realidade, e nesse território dos imaginários, a lembrança daqueles que eram crianças à época é um rico manancial de duendes e fantasmas.

Com esses cidadãos e cidadãs que hoje têm cabelos grisalhos e olham com rencor legítimo a lembrança de tanta maldade, que acontecia?

O mesmo fogo

Na apresentação da Editora Quatro Lunas, acertadamente, se revela a intenção do livro “O mesmo fogo” (El mismo fuego no título original) que motiva esta entrevista e que revela as respostas à pergunta que nos antecedeu no parágrafo anterior. Vejamos:

O pequeno José Gabriel não entende como os adultos podem viver seguros de quem são e, ao mesmo tempo, esquecer, dia após dia, aspectos importantes da própria existência. Seus tios, com quem ele vive depois do desaparecimento dos pais, ficam impressionados com a enorme memória do sobrinho, de apenas dez anos, que consegue se lembrar até dos menores detalhes. Essa hipertimésia, essa fixação na memória dos mínimos detalhes, fez dele o melhor transmissor de mensagens para seu tio Carlos, um preso político encarcerado em um país que poderia ser o Uruguai. Mas José Gabriel ainda é uma criança e, apesar de sua tremenda memória, não consegue entender uma realidade instável, atormentada por conspirações, segredos de família e cada vez mais violenta.

O Mesmo Fogo é um romance deslumbrante sobre amadurecimento ambientado no Uruguai dos anos 1970, um país que sofreu tensões políticas e sociais que levaram a doze anos de ditadura. É também um retrato pungente dos movimentos político-militares reacionários promovidos e dirigidos pelos Estados Unidos que devastaram a parte sul do continente americano naqueles anos. Uma história que poderia ser uma autobiografia psicológica e social do autor; uma investigação lúcida de Jorge Majfud que Eduardo Galeano resumiu assim: ‘Os anos passam, como as árvores passam pela janela do trem; e Jorge continua buscando a resposta’.”

Estimulado por essa belíssima apresentação, Raul Fitipaldi, para o Portal Desacato, dialogou com o autor, o escritor e professor uruguaio Jorge Majfud.

A seguir o resultado desse diálogo:

A geração silenciosa

Raúl Fitipaldi: Nesta Pátria Grande de exilados políticos, sociais e econômicos, devido ao imperialismo e ao capitalismo, como nossas infâncias foram condenadas?

Jorge Majfud: Como em todas as tragédias que atingiram diferentes povos em diferentes continentes, há uma geração marcada pelo fogo, com o mesmo fogo com que foi marcada a geração anterior, aquela que foi ao mesmo tempo protagonista e sofredora dos acontecimentos. É a geração de crianças que teve que viver e crescer nesse contexto de testemunhas forçadas ao silêncio. Somos a Geração Silenciosa, não só porque os mais velhos, com medo de represálias, sempre insistiram para que não falássemos na escola ou em público sobre tudo o que inevitavelmente sabíamos, mas também pelo silêncio e pela indiferença da maior parte da mídia pós-ditadura, do aparato cultural e, mais recentemente, pela indiferença forçada da nova geração, cansada de seus pais ou avós insistirem em lembrar.

Foto: Arquivo do Museu de Belas Artes / Argentina

RF: Por que essas mudanças?

JM: É algo natural até certo ponto, mas também, em um caso altamente político como o resgate da memória, ela tem sofrido um ataque estratégico: ela carrega a marca das agências secretas (esses grandes contadores de histórias, essas verdadeiras mãos invisíveis do mercado e da política) e a marca do capital dos lobbies e corporações, deuses inatingíveis por meros mortais. Não se diz, ou é muito raro que se diga, que alguém que se lembra do Holocausto judeu de 80 anos atrás esteja politizado, mas qualquer outra reafirmação da memória é desacreditada como um ato político e, pior ainda, um ato de corrupção. A memória não é algo que se resgata de uma vez para sempre, senão que deve ser mantida viva ou morre. Na Argentina, por exemplo, há uma discussão estratégica sobre se havia quinze ou trinta mil desaparecidos, como se quinze ou dez mil desaparecidos pudessem de alguma forma amenizar a brutalidade em escala nacional e internacional, como foi o caso da Operação Condor.

Ilustração
O livro “O mesmo fogo” acaba de ser lançado nas cidades de Valência e Madri

Militância da memória

RF: As ditaduras têm sido uma espécie de alerta permanente que alimenta nossas memórias e as mantém atentas contra qualquer surto fascista?

JM: Apenas relativamente. Embora os países latino-americanos compartilhem uma história semelhante de desapropriação, colonização e brutalidade imperialista, nem todos sofreram igualmente ou na mesma extensão. As pessoas que tiveram o azar de nascer em solo rico em recursos necessários para desenvolver os impérios do noroeste ao longo da Era Moderna foram as que mais sofreram, por mais tempo, e que acabaram mais pobres, mais corruptas e com mais violência econômica, política e social. Por outro lado, uma ditadura financeira pode ser brutal em sua desapropriação de um país inteiro e do mundo inteiro (como é o Ultra Capitalismo de hoje, como uma fase anterior ao Pós Capitalismo), mas raramente é vivenciada em um nível emocional e traumático, devido ao seu alto nível de abstração, razão pela qual a resistência ao seu domínio é mínima, quase impossível, e só pode ser vivenciada por meio de suas consequências, que raramente são atribuídas à sua causa. Portanto, tanto o trauma quanto o aprendizado não são inevitáveis, mas dependem de uma militância da memória.

O fator histórico

RF: Hoje você se dedica a ensinar e cultivar a memória por meio da literatura. Você acha que as crianças e os jovens de hoje entendem as mensagens fascistas transmitidas por figuras como Trump? Bolsonaro, Meloni, Milei, Bukele, entre outros?

JM: Há sempre um grupo que entende isso, que reivindica memória, mas para responder a essa pergunta, vamos analisar por um momento o problema em termos gerais, sociais e históricos.

Um indivíduo basicamente reproduz as esperanças e os medos ancestrais de seus antepassados como se fossem algo novo. O que sentimos agora foi sentido centenas de gerações antes de nós. O próprio fogo também integra esse fator a-histórico. O fogo de ontem e o fogo de hoje são os mesmos fogos. Por outro lado, as gerações não vivenciam, politicamente falando, as mesmas coisas que seus antecessores. Diferentemente da condição existencial e a-histórica do indivíduo, de uma dinâmica social e histórica, suspeito que gerações vivenciam três níveis diferentes do mesmo trauma, da mesma tragédia. Como já expliquei em outro lugar, temos que:

  1. Uma geração é seduzida pela violência fascista para resolver suas profundas frustrações.
  2. A próxima geração sofre um trauma profundo devido a uma guerra massiva ou ditaduras fascistas (geralmente os fascismos são ditaduras funcionais de impérios capitalistas, mas não é impossível encontrar exemplos de fascismo supostamente de esquerda ou na forma de democracias liberais; basicamente, o fascismo é nacionalista, anti-intelectualista, anseia pelo passado, é reacionário, precisa controlar a vida pública e privada e geralmente o faz por meio da censura, do medo e da fragmentação do trabalho e dos conceitos, privilegiando a fé, a propaganda e os sermões apaixonados em detrimento da crítica e da análise complexa).
  3. A terceira geração, a de crianças como o protagonista de El mismo fuego, como a nossa nas ditaduras militares da América Latina durante a Guerra Fria, mantém a consciência da brutalidade e trabalha para expor os traumas da geração anterior. O resgate da memória é sua principal ferramenta de reumanização.
  4. A quarta geração repete a primeira. Se ele não esquece ou nega a tragédia da segunda geração, pelo menos ele não a sente. Eles estão mais dispostos a esquecer ou menosprezar os acontecimentos históricos e a memória dos avós, algo que vemos claramente hoje em muitos países, tanto os satélites quanto a Argentina, com o ataque à educação esclarecida, contra aqueles que insistem em lembrar os desaparecidos durante a última ditadura, como nos próprios impérios (como é o caso dos Estados Unidos e sua reação cultural e policial às revisões históricas, “antipatrióticas”). Então esta geração começa a brincar com o fascismo mais uma vez, como fez a geração anterior aos seus avós, até que a próxima geração tenha que sofrer e repetir a catástrofe e os traumas da segunda geração.
Foto: Bebés y Más.com

História ou memória

RF: Você pode explicar um pouco mais sobre o que você quer dizer com história e memória?

JM: Claro, história e memória não são a mesma coisa. As primeiras, especialmente as histórias oficiais, as histórias fossilizadas pela indústria cultural, como o cinema, a literatura comercial, a imprensa e as narrativas sociais em geral, são feitas de esquecimentos estratégicos. O poder nunca será capaz de contar sua história sem esquecer, sem esquecimento. Por exemplo, quando o icônico filme The Alamo, de John Wayne, dramatiza a resistência heróica dos colonos anglo-saxões no Texas, ele omite o detalhe de que eles não estavam lutando pela liberdade, mas para restabelecer a escravidão onde os mexicanos a haviam proibido. O mesmo vale para a Teoria dos Dois Demônios ou a teoria “Estávamos em guerra” que a CIA impôs por meio de seus narradores militaristas na América Latina. A história oficial é sempre mitológica, desde sua narrativa até seus monumentos, com heróis indo para a batalha vestidos como se estivessem em um baile de gala e montados em caros cavalos brancos, o que era como ir para a guerra na Ucrânia em uma Lamborghini.

Agora, quando alguém aparece fazendo um esforço para resgatar a memória enterrada junto com os cadáveres de eventos históricos gloriosos, é acusado de ser antipatriota, herege ou radical perigoso que quer destruir o Ocidente.

Mas isso não é tudo. As omissões de histórias oficiais também ocorrem de maneiras muito sutis e eficazes, como quando, na melhor das hipóteses, um jornal conta todos os fatos, mas dedica uma manchete ao que um político disse e uma nota em letras pequenas na quinta página sobre um genocídio. Ou seja, mesmo quando a história não esconde fatos relevantes, ela define facilmente o que é importante e o que é irrelevante, com uma coerência que faz com que o irrelevante acabe desaparecendo da consciência coletiva.

Outra maneira é por meio das narrativas simplistas, mas demagógicas, dos políticos. Há dois ou três dias, a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni declarou: “Está ocorrendo na Europa um processo de islamização que está muito distante dos valores da nossa civilização”. Milhões aplaudiram essa mesma lógica que criticamos em “O Lento Suicídio do Ocidente” quando, em 2002, respondemos a outra famosa mulher italiana com as mesmas ideias, Oriana Fallaci.

Oriana Fallaci – Nasceu em 29 de junho de 1929, Florença, Itália, e faleceu em 15 de setembro de 2006, Florença, Itália

As coisas mais óbvias não são vistas, assim como normalmente não vemos nossos narizes porque eles estão muito próximos dos nossos olhos. O Ocidente se levanta com “raiva e orgulho” pela islamização do Ocidente por ser algo que está “muito longe dos valores da nossa civilização” quando foi o Ocidente que invadiu todos os cantos do mundo pela Ásia, África e América durante os últimos cinco séculos e até ontem, com seus exércitos e seus missionários para impor pela força da espada, do chicote, do canhão e dos bancos a cristianização estratégica de tudo o mais que não era cristão nem tinha “nossos valores”. Ou seja, não se trata apenas de uma questão de negligência estratégica, mas também da eterna presunção de que nossas leis, nossas políticas, nossa religião, nossa raça, nossa cultura e nossa moral são superiores, especiais e, portanto, devem ser aplicadas pela força e derramamento de sangue aos outros (em nome do amor e da liberdade), mas nunca o contrário. A regra de ouro das relações internacionais e interculturais, a reciprocidade, nunca foi aplicada quando isso significava um perigo para os interesses dos poderosos.

Então os despossuídos, oprimidos e massacrados reagem, e nós os demonizamos para podermos continuar massacrando-os, assim como fizemos com os nativos ao redor do mundo e continuamos a fazer com qualquer rebelde pela independência.

Os medos

RF: Que medos o adulto Jorge Majfud recria como herdeiro do período do Plano Condor, dos Trujillos, Ríos Montt, Somozas, Pinochet, Videla, “Goyo” Álvarez e outros monstros mais recentes como Janine Agnes?

JM: São os medos de retornar à segunda geração, aquela que deve sofrer os traumas e a brutalidade do fascismo, como eu disse antes. Na minha idade, não tenho muitos medos pessoais. Nem a morte me preocupa. Estou preocupado com o sofrimento da nova geração, nossos filhos, que terão que pagar não apenas as dívidas enormes que gerações criaram em benefício de uma micro elite, mas estou preocupado com as consequências dessa injustiça global que, mais cedo ou mais tarde, termina em uma revolução ou rebelião dolorosa, embora necessária e inevitável, com a tragédia multiplicada pela reação de fascistas como os que você acabou de mencionar, que são, em última análise, apenas lacaios funcionais, generais banana que realizam o trabalho sujo que nossa geração testemunhou diretamente, como sequestros, torturas, estupros, assassinatos e desaparecimentos, nada que aconteça em um campo de batalha onde dois iguais se enfrentam, mas nas masmorras covardes dos “salvadores da pátria” ou nos campos de refugiados pobres que são massacrados sem emoção pelas bombas inteligentes e multimilionárias dos mesmos velhos e poderosos psicopatas.

No vídeo abaixo, apresentação da obra “O mesmo fogo” de Jorge Majfud em espanhol

A obra pode ser adquirida no link abaixo:

https://editorialcuatrolunas.com/libros/narrativa/el-mismo-fuego/

Jorge Majfud é um escritor, romancista e ensaísta uruguaio. Formou-se em arquitetura na Universidad de la República. Na atualidade, dedica-se integralmente à literatura e a seus artigos em diferentes meios de comunicação. É professor na Universidade de Jacksonville, na Florida.

Raul Fitipaldi, é jornalista e apresentador, cofundador do Portal Desacato e da Cooperativa Comunicacional Sul – @raulfitipaldi

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