Desde o início do governo Bolsonaro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, mostrou interesse especial em privatizar o saneamento no Brasil. Ainda no terceiro mês do governo Bolsonaro, Salles estampou o objetivo de retirar das mãos do setor público o bilionário sistema de tratamento de água e esgoto no país.
“O setor público não vai resolver o problema de saneamento. Nós temos um problema de saneamento gigantesco em todo o Brasil. Não há recursos na área pública para fazer isso e, tampouco, agilidade e a estrutura para que isso chegue a contento em um curto espaço de tempo. É preciso transferir uma parcela significativa desse encargo para a participação do setor privado”, havia dito, durante um seminário promovido no Rio de Janeiro, em março de 2019.
Em meio à crise da proteção ambiental, desde o início, Salles deixou claro que sua preocupação estava centrada no saneamento à revelia do desmatamento da Amazônia e do Pantanal, por exemplo. Um ano e meio depois daquele discurso, nesta semana, o ministro revelou sua intenção de utilizar R$ 581 milhões do Fundo do Clima, administrados pelo BNDES, que poderiam ser gastos em proteção florestal, em saneamento.
“O envio dos recursos ao BNDES e esse novo entendimento de como aplicá-los, os R$ 580 milhões, dizem respeito muito mais à necessidade de alinhar essa pauta de agenda de qualidade ambiental urbana, saneamento e resíduos – que tem sim muita relevância na questão de emissões e que se tornou prioridade diante desse caos do saneamento e lixo que temos no Brasil”, disse Ricardo Salles, nesta semana.
A falta de preocupação no uso dessas quantias para mudanças climáticas no país se viu refletida na paralisação do fundo, que não foi utilizado no último ano. Cobrado recentemente em ação ingressada pelos partidos Rede, PSOL, PT e PSB no Supremo Tribunal Federal (STF), Salles admitiu que não estava interessado em aplicar em políticas diretamente relacionadas à mudança climática.
Mas já em março do ano passado, o ministro revelava interesse em modificar o modelo regulatório com vistas a atrair o setor privado. “Não adianta dizer que concorda e fazer o sistema regulatório que é anti-investimentos. Aliás, esse é um problema que permeia muito a área ambiental. Quando se fala na necessária harmonização do desenvolvimento econômico com o meio ambiente é porque sem desenvolvimento econômico não há recursos para rodar no meio ambiente.”
Nesse contexto, o Marco Legal do Saneamento, sancionado em julho deste ano, modificou o texto que havia sido aprovado pelos parlamentares, por meio de vetos, entre os quais o impedimento de estatais renovarem contratos sem licitação por 30 anos.
As brechas inseridas no Marco Legal do Saneamento
O veto no artigo 16 do governo desmantela a estrutura atual já criada, com as concessões públicas em parcerias privadas, gerando dificuldades tanto para as estatais de abastecimento de água hoje existentes, como também as empresas privadas que participam das licitações.
Ao retirar a possibilidade de regularizar contratos em andamento entre as empresas estatais, ao invés de favorecer as subcontratações das privadas, como indicava ser a intenção do governo federal, a medida também impactará parcerias público-privadas de saneamento, que são contratadas por empresas públicas, que por sua vez já mantinham uma estrutura para a exploração daquele serviço durante 20 ou 30 anos, nas redes de água e esgoto do país.
No campo financeiro, ainda, este bloqueio de renovação de contratos significará uma perda imediata de ativos para a concessionária pública, uma vez que o lucro é obtido com a exploração do serviço durante um prazo. Se essa concessionária perde o contrato, automaticamente ela perde os recursos, sendo zerados, para contratar outras empresas privadas por licitações. A vencedora da licitação, por outro lado, ganha toda a infraestrutura já investida no sistema.
Na prática, a consequência é a destruição do sistema público e das parcerias público-privadas como funcionam atualmente, conforme explicou o especialista Gabriel Galípolo, presidente do Banco Fator e que participou das discussões do Marco Legal de Saneamento, em entrevista à TV GGN, em julho deste ano. Relembre abaixo:
Mas, se a defesa escancarada da privatização era posta à mesa entre as reuniões do ministro Ricardo Salles com outras pastas interessadas [abaixo], para evitar um choque imediato na sociedade civil de que o Marco Legal, aprovado agora em julho, traria brechas para o sucateamento do sistema público, como se verificou com os vetos, pouco se falou em privatização quando o texto foi trabalhado nas mesas do Congresso.
Com as repercussões, os polêmicos vetos aguardam, ainda sem previsão, em uma fila de espera para análise dos parlamentares.
Faltam recursos?
Apesar de um incremento de uma média de R$ 1,6 bilhão de investimentos em saneamento por ano desde 2007 até 2014, e uma redução nos anos seguintes, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em maio do ano passado o governo adotou outro discurso e alegou que o problema não era a falta de recursos em si, mas da “capacidade técnica dos operadores atuais”, ou seja, as estatais.
No documento “Saneamento: Agora ou Nunca”, o tema foi tratado não pelo Ministério do Meio Ambiente, como uma problemática a ser resolvida em pautas ambientais como incisivamente argumentava Salles, mas pela Secretaria Especial de Produtividade, Emprego e Competitividade (SEPEC) e pela Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura (SDI) do Ministério da Economia.
Nele [acesse aqui], calculou-se que seriam necessários R$ 700 bilhões até 2033, o que corresponderia a R$ 50 bilhões por ano, para a universalização do atendimento no país. “Estes investimentos somente serão possíveis por meio do setor privado – como evidenciou-se com os setores de energia elétrica (99,8% de atendimento, após passar ao setor privado) e telecom (98% de cobertura)”, trouxe a pasta de Paulo Guedes, na mesma linha defendida por Salles.
Desde lá, a defesa da incapacidade do sistema público, que já vem sofrendo uma redução de cerca de R$ 1 bilhão por ano de investimentos públicos desde 2014, é associada pelos ministros à suposta necessidade de privatização completa do saneamento no Brasil. Contraditoriamente, para este processo de entrega do serviço a investidores, também estão sendo demandados recursos dos cofres do país.
Quanto o governo desembolsa?
Somente do Ministério do Desenvolvimento Regional já foram destinados mais de R$ 444,2 milhões para obras de saneamento, desde janeiro deste ano. Do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), uma das outras fontes de financiamento, mais R$ 496 milhões até setembro.
Deste total, mais de R$ 5,4 milhões da pasta foram liberados na semana passada para obras em 12 estados – Alagoas, Amapá, Espírito Santo, Maranhão, Pará, Minas Gerais, Rondônia, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe. Duas semanas antes, outros R$ 8,4 milhões foram desembolsados para iniciativas de 8 estados – Bahia, Goiás, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe.
Daqui para frente, em projetos planejados ou já iniciados na carteira de obras do setor – que incluem ações de abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de águas pluviais, saneamento integrado, novas instalações e a elaboração de estudos -, são esperados investimentos na ordem de R$ 21,1 bilhões do FGTS e de R$ 19,6 bilhões do Ministério do Desenvolvimento.
Mas todos estes recursos, ainda hoje públicos, serão estruturas bilionárias nas mãos de grupos privados. Bastará, para isso, que a empresa ganhe a licitação para realizar o serviço.
Lucro em disputa
E as articulações já estão em andamento. O ministro de Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, assumiu a frente dos anseios de Salles e de Guedes, e imediatamente após a aprovação do Marco Legal, lotou a agenda de reuniões e eventos com investidores para oferecer o setor. Na prateleira, a expectativa de que o primeiro leilão de concessão dos serviços de saneamento no Brasil ocorreria ainda em setembro.
Passando pelo “Invest in Brasil Infrastructure”, organizado pela Apex; “Brazil Week”, com empresários canadenses; o “Seminário Brasil-Itália”, com investidores italianos, Marinho carregou nas últimas semanas a agenda de que o Marco Legal do Saneamento Básico é a oportundiade para os investidores lucrarem com o país.
Por parte do governo, os bancos públicos entrando com opções para dinamizar o financiamento, pelo BNDES, lançando R$ 50 bilhões para os próximos 12 meses, e Caixa Econômica, apresentando mais R$ 1 bilhão do Fundo de Apoio à Estruturação de Projeto e Concessões de Parcerias Público-Privadas (FEP) ao setor.
Em outra frente de atuação, o governo liberou as concessionárias públicas hoje vigentes a captarem um total de R$ 3,4 bilhões no mercado financeiro, por meio de debêntures com incentivo fiscal – ou seja, com isenção de imposto, para financiar obras.
Além dos investidores estrangeiros, a oportunidade também está sendo sondada por empresas brasileiras, como é o caso da mista e de capital aberto Sabesp, que concorrerá a que deve ser a primeira licitação pós Marco Legal, de Maceió, Alagoas. Com oferta mínima de R$ 15,125 milhões, o vencedor irá operar todo o sistema de distribuição e de esgoto sanitário. Com um campo de R$ 2 bilhões já investidos do orçamento público durante 8 anos, o edital prevê a prestação do serviço para 1,5 milhão de habitantes.
A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp hoje atende mais da metade da população total do estado (45,538 mi) e o governo detém 50,3% das ações. Curiosamente, Salles foi secretário do Meio Ambiente de São Paulo entre 2016 e 2017, atuando no Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê, pelo qual foi condenado por fraudar o processo para favorecer empresas de mineração.
Nas articulações para decidir aonde serão investidos os demais fundos públicos, antes do fim dos contratos e da abertura de novos leilões, foi criado, no início do mês, em decreto [aqui], o Comitê Interministerial de Saneamento Básico (Cisb), responsável por concentrar estas decisões a partir da nova lei do saneamento. Além de Marinho do Ministério de Desenvolvimento Regional, compõem o grupo Ricardo Salles, Paulo Guedes, além das pastas da Saúde, Turismo e Casa Civil.