Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
“O consentimento não pode ser o único critério para determinar se há abuso sexual. Usa-se isso contra as vítimas, dizendo: ela queria e ela consentiu. Eu me detenho na riqueza semântica do conceito, porque há muita filosofia por trás. Houve meu consentimento, certo, mas também o de toda uma sociedade. Eu não fui forçada, porque não era nada igual ao adulto de 50 anos. Eu somente tinha catorze anos.” Vanessa Springora, escritora, autora de O Consentimento. La Vanguardia, 15/9/2020.
Éramos seis. E não me refiro ao título de um romance. Ela era uma. Somente uma.
Não lembro quantos anos tínhamos. Só lembro hormônios e juventude. E de ´batida de carnaval´: cachaça com algum suco de fruta. De fato, agora compreendo melhor esse processo de auto esquecimento. Memória seletiva, sem dúvida. Outro nome para a velha hipocrisia. E a Des-Culpa (sentimento cristão sobre sentimento cristão) jogada sobre o álcool. Desculpa esfarrapada.
Pura mentira: com ou sem bebida, aconteceria.
O consentimento é o cerne da questão. Ele, o tal ´consentimento´, ao qual se agarram, com unhas e dentes cravados, todos os machos violadores. Dos ´bons maridos´ e juízes que te condenam, aos mais maldosos estupradores, passando por aquele que te olha, insistentemente, os peitos no decote – e não relaciona uma coisa com outra. Seria bom dizer `você sabe do que eu estou falando´. Mas, não. Não é. Não é nada (!) bom.
O ovo da serpente não tem nada a ver com a picada da cobra? A única coisa a que hoje nos propomos é prestar atenção no que sim, peito, decote, cantada, sentença, ameaça, forçada, violação… tudo sim, tem (qual?!) relação. Eis a questão. Qual é a relação?
Ela, mais velha (mas nem tanto), nos chamou ao matagal que há detrás da Igreja do Carmo, no Sítio Histórico de Olinda. Era fim de tarde no alto daquele morrinho que eu conhecia de baixar sentado numa palha de coqueiro escorregando pela grama orvalhada, quando saía do Instituto Domingos Sávio – ali, bem em frente.
E bastou uma camisa, estirada no chão, como cama; ou como pano de limpar-se (a ela).
Três de nós, os mais jovens, ficamos de fora – graças a ela, decisiva. Eu, entre eles.
Ficamos em pé, em semicírculo, mais ou menos perto, não somente olhando. Cada um com sua forma de fantasia e excitação.
Como prêmio ou como castigo, ela nos olhava, aos Voyeurs, de vez em quando. Ali na nossa frente, estirada no chão.
O que durante anos foi, para mim, o peso de uma intensa frustração, tornou-se alívio, com o passar dos anos.
Hoje penso: que bom que eu escapei.
Mas, não nos enganemos, por favor.
O peso da minha consciência ficou lá, naquele dia, atrás daquela simbólica igreja onde eu estudei o catecismo por uns dias: eu só não participei daquela orgia porque ela não quis. Ela convidava os outros ao que, aos meus olhos, parecia mais como uma tortura para si.
Hoje não sei qual o pior. Haver sido descartado, três amigos de infância virarem piada de outros três nem tão amigos assim. Ou aquela cena, deprimente, persistente, na minha mente, e a pergunta que afinal nunca me calou: por quê, ao final de tudo, ela chorou?
Tempos depois, já pegando na mão da sua irmã, ganhei uma pista, significativa. Um detalhe importante. Sua irmã me confessou que Ela flertava com o suicídio, desde pequena, no orfanato onde ambas moravam. Foi a primeira vez que, na minha vida, escutei uma jovem menina, com lágrimas nos olhos, falar a palavra de moda na mesa dos meus bares de hoje em dia: depressão.
O que tem a ver tudo isso?
Aqui em Barcelona, no nosso grupo de homens que quer chamar-se de tudo menos grupo de homens (e isso é muito importante em todo o processo de desconstrução ou reconstrução), vez por outra, trazemos à roda questões como essa. A fórmula não é velha: desenterrar, de dentro de nós mesmos, nossos velhos machismos, para tentar compreender os machismos do mundo. E enterrá-los de vez, fora de nós, num imenso cemitério coletivo. Com todo o cuidado do mundo para o enorme risco de que não se tornem mortos-vivos, arrastando-se – outra vez – por dentro de nós mesmos.
Impressionou ao mundo a quantidade de mulheres que alçaram a voz e enfrentaram os processos de autoesquecimento, revelando todos os graus de violência sexista, escancarados pelo movimento internacional do Me Too (Eu Também)? O que havia do outro lado desse filme?
Pra cada uma delas, o pior de tudo é que não havia muitas vezes somente um homem. Como no relato que torno público, logo acima, éramos seis.
E eu, um deles. Do meu jeito.
Quantos de nós já viveu algo parecido? Na primeira vez que tentei explicar esse ocorrido, o amigo ao lado surpreendeu-me, dizendo que era ´muito leve´, diante de um acontecimento ao qual participou – e que também se arrastava, dentro dele: ´eu também tenho um zumbi assim´, sentenciou.
Incentivamos a que pudesse, conosco, se abrir.
Nunca mais voltou.
Como gota, vão pingando cada dia, cada caso – dependendo da famosa – em um ou outro jornal. E o que enfim acontecerá no dia que abrirmos a torneira da imensa cachoeira de homens, como cada um de nós, não-famosos incluídos?
Sabe qual é o problema?
Essa torneira, tão fechada, a ferro e fogo, é como água sobre pedra: fura e tanto bate, que arrebenta. Ou pra fora ou por dentro.
Lute contra essa infiltração.
Tu te molhas? Te atreves? Vem com a gente?
Porque não?
Barcelona, como se fosse Olinda. Finalzinho do verão de 2020.
Flávio Carvalho é sociólogo, participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya. @1flaviocarvalho