Por Flávio Carvalho, para Desacato.info.
“O medo dá origem ao mal. E o homem coletivo sente a necessidade de mudar” (Chico Science)
O medo de MUDAR é o medo de ser livre. Desculpe, Beto Guedes.
Delibes é um dos principais escritores espanhóis do século passado. No formidável conto A Mortalha, o pai reprime o filho apavorado, de uma forma que somente os melhores contistas sabem, sutilmente, explicar. O menino, órfão de mãe e que vive quase sozinho com seu pai, escuta aquela base subterrânea que permanece no inconsciente de uma criança, dito pela exata pessoa que deveria dizer exatamente o contrário, no exato momento que o menino mais necessitava de encorajamento: não tenha medo. Delibes é famoso por ser um escritor de poucas (porém acertadas) palavras: “En la literatura nada hay más difícil que la sencillez”. A simplicidade, o mais difícil, diz ele.
Homem não deve ter medo.
O medo é coisa de mulher.
Não resisto a adiantar um fato importante desse conto. Quando esse pai morre, estando sozinhos, no meio do nada, o filho encontra-se diante do pavor de ter o seu pai, que nunca o encorajou, ali, diante do seu corpo sem vida, necessitando que o menino faça algo. Vestir o cadáver do seu pai, com a mortalha, é o medo dos medos pra um menino que sempre sentiu-se só, mas agora falta exatamente a principal pessoa que lhe repetia ´não tenha medo´. Essa voz recorrente virou um corpo morto diante do menino medroso.
“La muerte… Tengo la impresión desde chico que estaba amenazado por la muerte; no la mía, sino la muerte de quienes dependía. Yo era un rapaz de cuatro o seis años pero tenía miedo de que me faltaran aquellos que me proporcionaban elementos para vivir, mis padres” (Delibes sobre Delibes).
´Se você não volta lá agora mesmo e der um chute na perna do coleguinha de rua que te ameaçou, serei eu, o teu pai, que te farei mais mal do que ele´, ameaça o principal referente na vida de uma criança. Aquele que nem precisa dizer as coisas assim tão abertamente (como, de fato, poucas vezes diz; exceto para essas demonstrações de macheza): sua vida, seu comportamento, os valores que expressam podem aprisionar para sempre um filho. Trauma, isso tem nome. E quanto mais calado um pai, mais ameaçador será, nas poucas vezes que se expresse.
Quem não conhece uma historinha assim?
Ultimamente, percebo que nós, homens, estamos apavorados. Temos muito medo.
Na verdade, somente me incluo como homem. Não como um medroso mais.
Conhecer meus medos, enfrentá-los e até aprender a conviver com os que estão sendo mais difíceis de extirpar, é um processo tão gostoso quanto doloroso. Pendular. Dual. Depende só de mim.
Os machos, atualmente, somos obrigados a lidar com vários tipos de medos. Se complementam tanto, que nossa maior dificuldade é percebê-los, cada um, na sua dimensão mais complexa. Como diria Delibes, quanto mais simples, mais difícil. Quando o medo é concreto e objetivo, primeiro paralisa. Quando é carregado de subjetividade, não dá tempo de operar a melhor equação: compreender a ameaça, pra logo poder reagir. Quando se corre, apavorado, olhar pra trás é a pior coisa a fazer-se.
Nosso problema, como tantos outros, é a negação. A negação do medo. O engolir esse pavor pode fazer mais mal que a própria ameaça. Se correr o bicho pode pegar; mas, ficando, o bicho come, mesmo!
No machismo, o sistema patriarcal ensinou-nos, historicamente, a aplicar o gatilho do deixa pra lá, diante dos piores medos. Acumulou-se tanto que agora explode como uma bomba de merda na nossa cara. A maioria dos choros de um homem nada mais é que o menino chorando os medos não chorados, quando eram pra ter sido chorados – e não foram.
Tudo isso para chegar aqui: a grande questão do machismo contemporâneo é o filme de terror, para um homem, sobre a perda dos seus próprios privilégios. Nada apavora mais um homem, atualmente, do que perdê-los. Porque privilégio é como nariz: maior ou menor, todo homem tem. E não é tanto pelo tamanho deles, dos privilégios. Nesse caso, tamanho não é documento, sim. É pela forma de exercê-los.
Demo-nos, portanto, três opções:
Se não admite o privilégio, não admitirá o imenso (incomensurável!) medo de perdê-lo.
Se lucra com o privilégio, sofrerá a queda mais alta na hora da perda. Quanto mais alto, maior o tombo.
Se diz que luta contra o privilégio, mas não o pratica (não existe ex-machista em definitivo; se o conhecem, apresentem-me urgente, por favor), está fazendo o pior aos seus próprios medos: alimenta-os escondidinho, quando apaga a luz do quarto, deita a cabeça no travesseiro e começa a permitir-se inconsciências (não confundir inconsciente com subconsciente; Freud explica).
Do mesmo modo, enfim, que os medos são como os machotes (ganham força quando estão juntos, cervejando-se em mesa de bar, por exemplo), a desconstrução dos nossos medos se ajudam, mutuamente, no coletivo.
Não conheci nada mais tão recentemente transformador do que um homem olhando os olhos de outro homem e compartilhando seus medos, quanto mais medrosos melhor.
Como eu sempre digo, mudou (ainda mais) a minha vida ver aquele bando de homens na reunião de um grupo de homens, em Olinda, chorando e sorrindo ao mesmo tempo, sem ser mesa de bar. Não havia álcool, nem outras drogas: havia medo. E até mesmo o medo – ou a felicidade – de perder os medos.
Vem com a gente? Você tem medo de quê? Você tem medo de perder o medo?
Ou vai dizer que você não notou ainda que estou sempre acabando meus textos com uma pergunta-convite como essa?
PS.: Acabei de deixar escapar um ´meu filho, não tenha medo´. Mas foi facílimo, pra mim, mudar, na hora, por um ´coragem e conta comigo pra tudo que precisar´. Ganhei duas coisas: exercitei aquela velha mania macho-besta de pai-herói e ainda inculquei no seu subconsciente (e no meu, principalmente) aquele melhor reforço. Confiar em ti mesmo é a melhor forma de não necessitar dos outros, nem de mim (que sou, certamente, pra determinados tipos de coisas, mais medroso do que tu).
E esse texto já ia acabar quando eu lembrei daquele causo, verídico, que eu adoro contar.
Meu filho tinha dois ou três anos e caiu. E eu pedi pra ele levantar-se sozinho.
Estirado no chão, ele insistiu pra que eu o levantasse. Neguei-me, novamente, com outro argumento: aprenda a levantar-se sozinho, pois nem sempre eu estarei pra te ajudar.
Teimoso como sempre foi (como eu sempre fui), João me desarmou: ´mas como agora tu estás aqui, levante-me´.
Com um abraço, concordei e o levantei. Não sem antes lhe lembrar de pedir ´por favor´…
Viva Miguel Delibes.
Barcelona, 5 de outubro de 2020.
Flávio Carvalho é sociólogo, participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya. @1flaviocarvalho
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