A cannabis já era usada na região havia milhares de anos, como remédio ou substância recreativa. Mas, na literatura médica do Ocidente, não havia nenhuma informação sobre a planta.
“Não consegui localizar referências sobre o uso dessa substância na Europa”, escreveu o médico, em um estudo sobre a cannabis publicado em 1839 na revista científica Journal of the Asiatic Society of Bengal, com o título “Sobre as preparações da cannabis indiana, ou Gunjah” (o artigo original que pode ser consultado em inglês neste link).
O estudo de O’Shaughnessy propunha registrar o potencial médico da cannabis pela perspectiva científica. Além disso, fazia observações sobre o uso social da substância. Segundo O’Shaughnessy, a droga era consumida por “todo tipo de pessoa”. Entre seus efeitos “fascinantes”, estavam “a felicidade eufórica”, “a sensação de voar”, um “apetite voraz” e “um intenso desejo afrodisíaco”.
Experimentos científicos com a maconha na Índia
Nascido em 1809, O´Shaughnessy estudou medicina na Universidade Trinity, em Dublin, e depois em Edimburgo, Escócia. Ainda muito jovem, com 24 anos, aceitou uma proposta para trabalhar em Calcutá, na Índia, como assistente cirúrgico da então famosa Companhia das Índias Orientais, empresa britânica que controlava e governava grande parte das Índias.
Foram oito anos em Calcutá. Nesse período, o médico irlandês experimentou uma variedade de plantas locais, como o ópio e a cannabis.
A cannabis, especificamente, era muito conhecida pela sociedade local, mas não pela medicina. Então, o médico decidiu fazer uma pesquisa rigorosa, consultando tanto fontes bibliográficas como humanas.
Além disso, fez experimentos com diferentes animais, como ratos, coelhos, gatos, cachorros, cavalos, macacos e até aves e peixes, descrevendo o efeito da droga em cada um deles.
Em um desses experimentos, o médico deu dez gramas da substância para um cachorro de porte médio. Meia hora depois, o animal “ficou estúpido e sonolento” e “sua cara ficou com aspecto de total e absoluta embriaguez”. “Estes sintomas duraram de uma a duas horas e depois foram desaparecendo gradualmente. Seis horas depois, o animal estava ativo e perfeitamente bem”, assinalou.
Depois de confirmar que o uso de cannabis era seguro, O’Shaughnessy passou a experimentar a substância em humanos, tanto adultos como crianças. Além disso, passou a usar a cannabis em tratamentos de seus pacientes do hospital – doentes de cólera, reumatismo, raiva, tétano e pessoas com convulsões.
As conclusões do médico sobre a maconha
O médico irlandês não conseguiu curar nenhuma doença com a cannabis. Mas concluiu que a substância poderia ajudar a tratar sintomas graves de muitas enfermidades. Podia, por exemplo, acalmar e aliviar a dor, bem como sufocar espasmos musculares típicos de tétano e raiva, reduzindo “os horrores da doença”.
Também observou que a cannabis poderia prevenir convulsões em um recém-nascido, com apenas 40 dias de vida. Sobre esse caso, o médico escreveu: “a profissão ganhou um remédio anticonvulsivo de grande valor”.
Em 1839, O’Shaughnessy defendeu publicamente o uso da cannabis na medicina, principalmente como analgésico, ao apresentar sua tese na Sociedade Médica e Física de Calcutá. O estudo causaria um furor na Inglaterra colonial – e depois por toda a Europa e Estados Unidos. E é considerado o marco da introdução da cannabis na medicina ocidental.
Cannabis se tornou uma febre médica no Ocidente
Quando O’Shaughnessy retornou para a Inglaterra, em 1841, levou consigo amostras de cannabis, tanto em planta como em resina.
Apresentou a substância para a Sociedade Farmacêutica Real e para os Jardins Botânicos Reais de Kew, em Londres, e descreveu seus estudos com cannabis, afirmando que a substância era um remédio “milagroso” para algumas das piores doenças do século 19.
A partir de então, muitos pesquisadores da Europa e dos Estados Unidos começaram a experimentar a cannabis em diferentes tratamentos médicos. Muitos também tentaram descobrir qual era o ingrediente ativo da cannabis – mas isso só ocorreria um século depois, em meados da década de 1960.
Em meados do século 19, remédios a base de cannabis passaram a ser produzidos, alguns deles baseados nas receitas deixadas pelo médico irlandês. Os produtos foram se tornando populares, alcançando seu auge no final do século.
Mas, na virada para o século 20, o uso desses remédios começou a cair. Um dos motivos foram as dificuldades para produzir resultados estáveis a partir de diferentes lotes de plantas, já que a potência da cannabis variava muito.
Já nos anos 1930, o uso de remédios medicinais a base de cannabis começou a ser restringido. Em 1937, sua venda foi proibida nos Estados Unidos. Em 1942, a cannabis foi retirada da enciclopédia farmacêutica. E, a partir dos anos 1950, a posse de maconha passou a ser criminalizada e multada. Algo similar ocorreu em outros países.
Hoje, o uso da cannabis em tratamentos médicos segue sendo uma controvérsia.
Descobertas feitas há 150 anos são válidas até hoje
Curiosamente, depois do êxito da sua tese sobre o potencial médico da maconha, O’Shaughnessy mudou de rumo e passou a se dedicar à engenharia elétrica.
Voltou para a Índia, onde passou 15 anos trabalhando em uma linha de telégrafo. Por seus esforços no projeto, recebeu da Rainha Vitória o título de “Sir”.
Em 1860, retornou mais uma vez para Inglaterra. Em 1889, faleceu. Pouco se sabe sobre seus anos finais.
Talvez o mais surpreendente da história de O’Shaughnessy seja que algumas de suas descobertas em 1839 sejam válidas até hoje: os principais usos médicos da cannabis continuam sendo como analgésico e anticonvulsivo.