por Rômulo de Andrade Moreira[1]
Um relatório divulgado ontem (14) pela Rede de Observatórios da Segurança, projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), com apoio da Fundação Ford, mostrou em números a realidade da violência policial contra os negros no Brasil, a partir de dados coletados em sete estados brasileiros durante o ano de 2020.
Com números obtidos via Lei de Acesso à Informação, a pesquisa “Pele alvo: a cor da violência policial” avaliou dados de sete estados brasileiros: Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão.
De acordo com a pesquisa, a cada quatro horas uma pessoa negra é morta em ações policiais em seis dos sete estados monitorados pela Rede: Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo; o governo do Maranhão, infelizmente, não informou a cor das vítimas da violência.
Para os pesquisadores, nem mesmo a crise sanitária mundial foi capaz de conter a letalidade policial nos estados avaliados pela pesquisa: foram 2.653 mortes provocadas pela polícia com informação racial nos seis estados analisados, sendo 82,7% das mortes de pessoas negras. Segundo o levantamento, há no Brasil “um racismo declarado que se pratica com a anuência de autoridades e a naturalização de boa parte da sociedade.” Os números mostram “que mesmo em um contexto de crise sanitária mundial o racismo não dá trégua e, pelo contrário, mata ainda mais, tanto por vírus como por tiro.”
Pela primeira vez a Rede de Observatórios apresenta também os números das capitais. Surpreendentemente, todos (!) os mortos pela polícia em Recife, Fortaleza e Salvador eram pessoas negras. Teresina e Rio de Janeiro chegaram perto dessa marca, registrando 94% e 90% de negros mortos pelas polícias, respectivamente.
Em todos os estados, a presença de negros entre os mortos pela polícia é bem maior do que na respectiva composição populacional, “mostrando que a morte pela ponta de um fuzil carregado por um policial atinge de maneira desproporcional os negros em relação aos não negros.”
O estudo mostrou que o Rio de Janeiro é o estado que mais produziu mortes em ações e intervenções das polícias, com 1.245 registros no ano passado. Desse total, 86% foram de pessoas negras, apesar do grupo representar apenas 51,7% da população. É o estado que mais mata pessoas negras em ações policiais com 939 registros entre os 1.092 mortos que tiveram a cor/raça informada. Como em anos anteriores, o estado segue sendo o que mais produz mortes em ações e intervenções das polícias, apesar de uma redução de 31% em comparação com o ano de 2019; porém, observa-se que mesmo nesse contexto, o valor é o terceiro maior registro de toda a série histórica. A capital carioca também é a que registrou o maior número total de mortes, com 415 registros: 90% dos mortos em ações policiais são negros.
A Bahia, mais uma vez, apresenta a maior porcentagem de mortes de pessoas negras por agentes do estado com a polícia mais letal do Nordeste. A cidade em que mais pessoas negras morrem em ações policiais no Brasil, fica na Bahia, é Santo Antônio de Jesus, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Não à toa, o estado ocupa a terceira posição entre os que possuem o maior número de mortos (595), ficando atrás apenas do Rio de Janeiro (939) e São Paulo (488), que é o estado mais populoso do Brasil. A polícia da Bahia segue sendo a mais letal do Nordeste e entre todos os estados da Rede é a que apresenta o maior percentual de pessoas negras mortas em ações policiais, com 98%. Em Salvador, todas (!) as vítimas da polícia são negras.
Em Pernambuco, houve um aumento de 53% de mortes provocadas por ação de agentes do estado, com um salto de 93% para 97% de pessoas negras entre as vítimas de um ano para o outro. No estado, as mortes por intervenção policial mais que dobraram (53%) e aumentou também a proporção de negros mortos nessas ações que chega a 97%. No total, 113 pessoas foram vítimas de ações policiais no estado. Dessas, 109 eram pessoas negras, três brancas, e em um caso não foi possível identificar a cor da pele. No ano anterior, o total de pessoas mortas pela polícia em Pernambuco foi de 74 casos, e 93% eram negras. Quando se analisa o percentual de pessoas negras mortas pela polícia nas capitais dos estados, Recife mostra que todas as pessoas mortas pela polícia no município são negras, ou seja, inacreditavelmente, o percentual é de 100% das pessoas negras mortas pela polícia em 2020.
No Ceará, negros tem sete vezes mais chances de serem mortos do que não negros e a letalidade policial oscilou para cima na comparação entre 2019 e 2020 no que diz respeito aos números gerais. Quando se observa a cor das vítimas, nota-se uma discrepância entre o percentual da população negra na população em geral (62,3%) e no percentual de pessoas negras vítimas de agentes estatais (87,2%). Isso porque o estado é um dos que mais acumulam problemas com relação ao acompanhamento da cor das vítimas. São 106 vítimas incolores contra 39 com identificação racial. Em Fortaleza, 100% dos mortos pela polícia com identificação racial são negros.
No Maranhão, surpreendentemente, o governo não acompanha a cor das vítimas policiais no estado; mas, é possível saber o número de pessoas que foram vitimadas por policiais no estado e o número subiu de 72, em 2019, para 97, em 2020. A variação entre um ano e outro foi de 35%
No Piauí, 91% das vítimas da violência letal da polícia são negras. Nessa mesma direção, a capital Teresina ocupa o terceiro lugar das capitais monitoradas, com 94% de letalidade da população negra por atividade policial, destacando-se, ainda, que 73% da população declararam-se negros.
Em São Paulo, foram 814 mortos pela polícia em 2020. Do total de homicídios, houve registro de raça das vítimas em 770 ocorrências. Em 63% dos casos, as vítimas eram negras. A proporção de pardos e pretos entre os mortos é quase o dobro do percentual desse mesmo grupo na população paulista (35%). A situação se inverte no caso dos brancos, que representam 64% da população, enquanto 36% entre os mortos pela polícia. Na capital, o percentual de negros mortos pela polícia é de 69%, mas em número de casos, o município de São Paulo (317) só perde para o Rio de Janeiro (415).
Dentre as conclusões da pesquisa, podem ser enumeradas as seguintes:
- O Rio de Janeiro é o estado que mais produz mortes em ações e intervenções das polícias, sendo esse o terceiro maior registro de toda a série histórica da Rede de Observatórios da Segurança; o Rio de Janeiro também foi a capital, dentre as avaliadas, que registrou o maior número total de mortes;
- São Paulo, o estado mais populoso do país, é o segundo em número de mortes;
- Com 98%, Bahia apresenta a maior porcentagem de negros mortos por agentes;
- Em Salvador, Fortaleza e Recife 100% dos mortos em ações policiais são negros;
- Pernambuco mais que dobrou o número de mortos pela polícia e 97% dessas pessoas são negras;
- No Ceará, negros tem sete vezes mais chances de morrer que não negros;
- Número de negros mortos pela polícia ultrapassa 90% no Piauí;
- Maranhão tem apagão de dados e não acompanha a cor dos mortos pela polícia.[2]
Como se vê, e como mostram os números irrefutáveis, há em curso no Brasil, e não é de hoje obviamente, uma verdadeira política de governo para matar pessoas negras, comparável à necropolítica de que trata o filósofo e pensador camaronês, Achille Mbembe.
Para Mbembe, “aexpressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais.” Assim, ao final e ao cabo, “ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.” Logo, neste sentido, “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ´descartável` e quem não é.”
Rejeitando a crença romântica da soberania como algo em “que o sujeito é o principal autor controlador do seu próprio significado”, Mbembe preocupa-se, sob uma ótica inteiramente diversa, “com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas ´a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações`.”
Neste sentido, criticando o que ele chama de um “discurso filosófico da modernidade”, demonstra muito afirmativamente que das “experiências contemporâneas de destruição humana” pode muito bem ser extraída “uma leitura da política, da soberania e do sujeito”, a partir da consideração de “outras categorias fundadoras menos abstratas e mais palpáveis, tais como a vida e a morte.”
Portanto, as noções de “necropolítica” e de “necropoder” desenvolvidas pelo autor ajudam a compreender “as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar ´mundos de morte`, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de ´mortos-vivos.”[3]
Sem dúvidas, o racismo no Brasil (estrutural, social e institucional) é a causa determinante de uma infindável série de iniquidades que, ao longo de nossa história, atinge esta gente riquíssima, dentre outras coisas, por sua capacidade incrível de resistência e sua extraordinária inteligência e abundância cultural, nada obstante se saber “que desde o início da colonização, as culturas africanas, chegadas nos navios negreiros, foram mantidas num verdadeiro estado de sítio.” [4]
É preciso estar atento e saber que “as lutas mais longas e mais cruentas que se travaram no Brasil foram a resistência indígena secular e a luta dos negros contra a escravidão, que duraram os séculos do escravismo. Tendo início quando começou o tráfico, só se encerrou com a abolição.”[5] É urgente também entender que “face ao racismo, não há compromisso possível. Não há tolerância possível. Só há uma resposta: a tolerância zero. Esta resposta pode parecer radical, mas é a única resposta concebível se quisermos adotar, em relação a este problema, uma atitude coerente e eficaz.”[6] Por isso, é necessário, apesar dos “deslumbramentos ocidentais”, saber-se negro, e sendo um negro, “cada vez mais negro, não ficar mudo diante desse deslumbramento.”[7]
No Brasil – antes e depois da escravização a que foram sujeitados homens, mulheres e crianças (a maioria sequestrada do continente africano) – o massacre do povo negro sempre foi uma realidade com a qual se convive, e se habitua ainda hoje, numa odiosa e farisaica complacência dos brancos em geral, que se alvoroçam todos em uníssono quando um dos seus é morto, e se compraz covardemente quando um dos outros é a vítima.[8]
Portanto, o levantamento feito pela Rede de Observatórios da Segurança, mostra, como tantas outras pesquisas já o fizeram, que o Brasil, longe de se tratar de uma suposta e falsa (e mesmo hipócrita!) “democracia racial” (como costumam dizer alguns acadêmicos, ora mesmo racistas, ora ignorantes de nossa realidade e de nossa história), é um lugar onde o racismo está entranhado social, estrutural e institucionalmente, fato que (talvez) explique uma conivente apatia integrante de um lado sombrio que permeia a nossa elite econômica, social, acadêmica, política e jurídica, que aceita a normalização de uma violência específica e reiterada, como se fosse algo necessário para uma efetiva política pública de segurança pública, ou uma decorrência inevitável da pobreza que também assola principalmente a população negra no Brasil, desde sempre alijada da riqueza aqui produzida e vítima de uma política de governo que manda exterminá-la.
[1] Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS. Pós-graduado pela Universidade de Salamanca.
[2] Disponível em: http://observatorioseguranca.com.br/uma-pessoa-negra-e-morta-pela-policia-a-cada-quatro-horas/. Acesso em 14 de dezembro de 2021. Para ler a pesquisa completa acesse o link: http://observatorioseguranca.com.br/wordpress/wp-content/uploads/2021/12/RELATORIO_REDE-DE-OBS_cor-da-violencia_dez21_final.pdf.
[3] MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018, pp. 41 e seguintes.
[4] NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016, p. 123.
[5] RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras: 2006, p. 202.
[6] DELACAMPAGNE, Christian. História da Escravatura – Da Antiguidade aos nossos dias. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2013, p. 222.
[7] CAMARGO, Oswaldo de. O Negro Escrito – Apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1987, p. 9.
[8] Quando se visita, por exemplo, o Museu Imperial de Petrópolis, e se admira a coroa de D. Pedro II, não se pensa que aqueles 639 minúsculos diamantes que a adornam foram garimpados por pessoas escravizadas em Minas Gerais e outras regiões do Brasil (GOMES, Laurentino. Escravidão – Volume I – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: 2019, p. 62).