Por Jorge Luiz Souto Maior.
Nos dias 28 e 29 de abril, enquanto professores estaduais eram violenta e covardemente atacados no Paraná, no ato que ficará conhecido como o “massacre de Curitiba”, cerca de 50 garis eram igualmente massacrados, também de forma violenta e covarde, no Rio de Janeiro, embora de forma diversa, sendo que em ambos os casos foram atingidas a classe trabalhadora como um todo e a ordem jurídica constitucional.
A Comlurb e a administração do Município da cidade do Rio de Janeiro de repente perceberam que, por uma “coincidência do destino”, os trabalhadores que lideraram a greve, que perdurou de 13 a 20 de março deste ano, tinham, todos eles, acumulado motivos em sua ficha corrida para serem dispensados por justa causa.
Mesmo sem adentrar os detalhes de cada caso específico fica muito fácil perceber que o ato foi uma represália pela greve e mais ainda pela derrota experimentada pela Comlurb e pelo Município na greve do ano passado, da qual resultou um reajuste salarial na ordem de 37%, com os salários passando de R$ 802,57 para R$ 1.100,00.
Interessante que em nota pública a Comlurb tentou justificar as dispensas com outras dispensas, como se tal procedimento de conduzir pessoas ao desemprego fosse o seu papel institucional e estivesse na mais perfeita correspondência com a ordem jurídica. A sua defesa é baseada no argumento de “desliga empregados com base na legislação trabalhista e por critérios de avaliação próprios”, acrescentando que: “Em 2015, tivemos até o dia 10 de abril 115 desligamentos, sendo 41 por justa causa, destes 10 eram cargos de confiança, 33 a pedido e 19 por falecimento. Estas novas demissões seguem esses critérios, sejam por justa causa ou por baixo desempenho”.
No entanto, do ponto de vista jurídico as coisas não são bem assim, na medida em que as empresas, sobretudo públicas, devem cumprir uma função social e as dispensas coletivas de trabalhadores, por ato unilateral do empregador, estão vetadas em nosso ordenamento, conforme reiteradas decisões da Justiça do Trabalho (TRT 2ª R., SE 2028120080000200-1, AC. SDC 00002/2009-0, j. 22.12.08, Relª Juíza Ivani Contini Bramante, LTr 73-03/354; TRT 15ª R., DC 309-2009-000-15-00-4, AC. 333/09, DO de 30.03.09, Rel. José Antonio Pancotti, LTr 73-04/476), valendo o destaque para a seguinte Ementa do Tribunal Superior do Trabalho, estatuída no Processo n. TST-RODC-309/2009-000-15-00.4, Relator Ministro Maurício Godinho Delgado.
Oportuno lembrar que a Convenção 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, dispõe que “os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego”, além da condenação do Brasil junto ao Comitê de Liberdade Sindical, ocorrida em 2009, em função das dispensas arbitrárias feitas pelos governos do Rio de Janeiro e de São Paulo por ocasião de greves dos trabalhadores metroviários (Caso nº 2.646).
Neste contexto, qualquer ato do empregador que tende a minar o direito de greve deve ser severamente coibido pelo direito, pois este visa a garantir o exercício do direito de greve, para que o princípio democrático seja concretizado nas relações de trabalho, pois só a greve permite um diálogo em paridade de condições entre os empregadores e seus empregados.
2. Os termos da lei de greve
Atentemos, aliás, para o que está previsto expressamente em lei.
Preceitua o artigo 9º da Lei n. 7.783/89 que “Durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento.” – grifou-se
Resta claro, portanto, que deflagrada a greve, que é um direito dos trabalhadores, cumpre a estes e ao empregador, de comum acordo, definirem como serão realizadas as atividades inadiáveis. As responsabilidades pelo efeito da greve não podem ser atribuídas unicamente aos trabalhadores, até porque esses estão no exercício de um direito. Aos empregadores também são atribuídas responsabilidades e a primeira delas é a de abrir negociação com os trabalhadores, inclusive para definir como será dada continuidade às atividades produtivas.
Assim, não pertence ao empregador o direito de definir sozinho como dará prosseguimento aos serviços, gerando a conclusão inevitável de que a manutenção das atividades do empregador, com incentivos pessoais a um pequeno número de empregados, que, individualmente, resolvem trabalhar em vez de respeitar a deliberação coletiva dos trabalhadores, constitui uma ilegalidade, vez que visa frustrar fraudulentamente o exercício legítimo do direito de greve.
Ou seja, para a lei, a tentativa do empregador de manter-se funcionando normalmente, sem negociar com os trabalhadores em greve, valendo-se das posições individualizadas dos ditos “fura-greves”, representa ato ilícito, que afronta o direito de greve.
Qualquer tipo de ameaça ao grevista ou promessa de prêmio ou promoção aos não grevistas constitui ato antissindical, tal como definido na Convenção 98 da OIT, que justifica, até, a apresentação de queixa junto ao Comitê de Liberdade Sindical da referida Organização.
No que se refere às consideradas atividades essenciais, a lógica é exatamente a mesma. O artigo 11 da lei 7.783/89 dispõe que “Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” (grifou-se), acrescentando o parágrafo único do mesmo artigo que “São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.
As responsabilidades quanto aos efeitos da greve atingem, portanto, igualmente, trabalhadores e empregadores. Isso implica que cumpre ao empregador iniciar negociação com os trabalhadores, coletivamente considerados, para manutenção das atividades, estando impedido de fazê-lo por conta própria, utilizando-se de trabalhadores que, por ato individual, se predisponham a continuar trabalhando, seja por vontade própria, seja por pressão do empregador, em virtude de ocuparem cargos de confiança (supervisores, por exemplo) ou por se encontrarem em situação de precariedade jurídica.
Pelos parâmetros legais não é possível obrigar os trabalhadores retornarem ao trabalho, mesmo no caso de atividades essenciais, pois como preconizado pelo art. 12 da lei em comento, não se chegando ao comum acordo, cumpre ao Poder Público assegurar a prestação dos serviços indispensáveis e não conduzir os trabalhadores, manu militaris, aos postos de trabalho.
Interessante perceber que os argumentos em defesa dos interesses da população quanto aos serviços públicos, utilizados em detrimento do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, não são os mesmos quando se discute a privatização, pois aí os serviços públicos deixam de ser essenciais. Aliás, cabe indagar: como se julgarão as greves dos serviços públicos privatizados mediante a transferência para Organizações Sociais que contratarão, segundo decisão recente do STF (ADI 1923), trabalhadores na ordem jurídica privada?
Na linha das ilegalidades cometidas contra o direito de greve, é importante destacar o papel que, infelizmente, vem sendo atribuído à força policial, como elemento de repressão aos piquetes. Ora, como dita o art. 6º. da Lei n. 7.783/89, “são assegurados aos grevistas, dentre outros direitos: I – o emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve”.
Verdade que esse mesmo dispositivo diz que “As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa” (§ 3º.), mas o que se pode extrair daí é a existência de um conflito de direitos, que se resolve em contenda judicial, e não pela via do “exercício arbitrário das próprias razões”, que, inclusive, constitui crime, conforme definido no art. 345, do Código Penal, sendo certo, ainda, que no conflito de direitos há que se dar prevalência ao exercício do direito de greve, pois no Direito do Trabalho a normatividade coletiva supera a individual, a não ser quando esta seja mais favorável. Recorde-se que é a partir dessas premissas que se tem entendido imprópria a interposição de interdito proibitório contra piquetes, como visto acima.
Desse modo, não é função da Polícia Militar intervir em conflito trabalhista e definir arbitrariamente qual direito deve prevalecer, reprimindo um interesse juridicamente garantido e tratando trabalhadores como criminosos.
Interessante que no “massacre de Curitiba”, o pretenso direito fundamental de ir e vir foi exatamente o direito inibido pela ação da Polícia Militar. A decisão judicial, que respaldou a ação policial, procurou garantir a realização do trabalho em detrimento do direito de ir e vir dos professores, um direito, ademais, que não se efetivaria em abstrato, como tantas vezes sugerem algumas decisões judiciais, mas para concretização da democracia no sentido da participação política junto aos parlamentares que votavam lei do interesse dos professores.
Aliás, é impressionante como o Estado consegue organizar todo um aparato policial para cumprir ordem judicial que interessa ao governante ou ao grande capital e não age de forma nem mesmo parecida quando se trata de conferir efetividade a direitos, também judicialmente declarados, dos trabalhadores e dos movimentos sociais em geral. Quantos direitos dos manifestantes massacrados em Curitiba, já judicialmente assegurados, ainda não foram cumpridos pelo mesmo Estado?
O fato é que essa forma do governador determinar ação policial para garantir a votação de uma lei do interesse de seu governo é gravíssima, ainda mais quando levada às últimas conseqüências do enfrentamento dos professores como se não fossem seres humanos ou como inimigos que devessem ser abatidos em campo de batalha. Essa gravíssima atitude, que atenta contra a ordem pública, submete os autores às penalidades administrativas, inclusive com perda da função pública, sem prejuízo de sanções civis e criminais.
Ora, onde foram parar: o direito de ir e vir dos professores estaduais? O direito à livre manifestação? O Direito à integridade física e moral?
Com a supressão concreta desses direitos, que representou, também, a negação da democracia, vez que os professores não tiveram garantido o seu direito de ir à “casa do povo” para gritar, apitar, panfletar, identificar e vaiar os deputados, o resultado é o da plena ilegalidade da lei aprovada, pois votada fora dos princípios democráticos e ainda apoiada em um massacre e, por via reflexa, à toda população brasileira.
Nenhuma lei pode ter vigência se sua votação não atendeu os preceitos democráticos, ainda mais carregando consigo um histórico de sangue.
3. Racionalidade do direito de greve e discriminação
Vale uma observação de natureza metodológica, que deve guiar a racionalidade social e jurídica sobre a greve.
Durante a greve, com extensão para todas as situações presentes e futuras que a ela se relacionam, os direitos e as obrigações que foram estabelecidos para a estabilização das relações individuais de trabalho não têm aplicação, com a mesma potencialidade, durante a greve, pois o direito não existe em tese e não incide no vácuo.
Ora, as atitudes dos trabalhadores, no exercício da greve ou na construção da consciência coletiva para se implementar uma luta coletiva por melhores condições de trabalho, não podem ser avaliadas como se estivessem em momento de conflito contido. Não é racional pressupor que dirigentes sindicais ou líderes do movimento se dirijam aos demais trabalhadores neste momento de tensão sem exprimir palavras de ordem, sem proferir discursos inflados e sem a demonstração de que seus atos correspondem às suas falas. Se nem mesmo nas discussões no Congresso, no Supremo, nas Assembleias Legislativas o tom é, digamos assim, nobre e cordial, ainda que as manifestações sejam antecedidas por um “vossa excelência”, por que o deveriam ser as que se proferem em caminhões de som por ocasião de uma greve?
O modo como tem sido entendida juridicamente a greve confere, ademais, uma posição extremamente cômoda ao empregador, sendo que a greve seria, exatamente, para retirá-lo dessa zona de conforto. Sem uma visão em torno da efetividade do direito de greve, basta ao empregador se recusar a atender as reivindicações dos trabalhadores e a negociar para que todo o peso do momento recaia sobre os trabalhadores em greve, sendo que ainda conta, primeiro, com os “fura-greves”, a quem, conforme se costuma dizer, há o direito de ir e vir para adentrar no ambiente de trabalho e continuar trabalhando normalmente e, segundo, com a força policial, que se coloca em favor de garantir esse pretenso direito e também o suposto direito do empregador de continuar em franca atividade. Não se esqueça que aos empregadores ainda tem sido conferida a possibilidade de minar os efeitos da greve mediante a utilização, cada vez mais ampla, da terceirização, sendo oportuno destacar que é exatamente com esse propósito que se apresenta a reivindicação patronal pela aprovação do PL 4. 330/04.
Nesse contexto totalmente desviado daquilo que seria o ideal, qual seja, de um direito sendo utilizado para garantir a greve, os trabalhadores em greve acabam experimentando, pelo exercício da greve, um momento de enormes sacrifícios pessoais e de extrema insegurança jurídica.
Com efeito, diante de tantas adversidades, ao tentarem levar adiante o movimento de greve, com discursos inflamados e ações de piquetes, necessárias para impedir o cometimento da ilegalidade dos fura-greves, os trabalhadores em greve se veem obrigados a um enfrentamento com outros colegas de trabalho e não raro com a Polícia Militar e é exatamente neste instante que se completa a inversão de valores, pois quando os trabalhadores de fato estão sendo coibidos de exercer o direito de greve e buscam se defender passam a ser tomados por agressores, como se fossem eles os agressores da ordem jurídica.
Então, por atos praticados na dinâmica de uma luta, que vai ao ponto do enfrentamento em razão das estratégias silenciosas do empregador de repressão ao movimento, os trabalhadores em greve são punidos por meio de uma compreensão invertida da ordem jurídica e pela aplicação de normas que se direcionam a realidades estáticas e não ao momento de efervescência do conflito, o que representa, em concreto, negar a própria essência do direito de greve, que deve ser entendido como o direito de expressão do conflito entre o capital e o trabalho para viabilizar uma forma democrática de reconstrução do conjunto normativo que estabelece obrigações ao capital pelo permissivo da exploração do trabalho.
Esse pressuposto de análise, que é necessário para melhor compreender os atos praticados pelos trabalhadores na dinâmica de uma greve, não pode ser afastado nem mesmo diante de uma decisão judicial determinando o fim da greve, até porque na essência as decisões judiciais que buscam cessar a greve sem eliminar o conflito ferem a lógica do comportamento humano e própria essência do direito de greve, ainda mais quando tais decisões são dadas liminarmente sem considerar as peculiaridades próprias do serviço e da origem do conflito.
Sem a redução do elemento momentaneamente potencializador do conflito, sem avaliação da responsabilidade do empregador em não negociar, em desrespeitar os direitos dos trabalhadores, em tentar manter-se em funcionamento durante a greve com utilização de terceirizados e incentivos aos fura-greves, qualquer decisão judicial que apenas culpa os trabalhadores pelo conflito e pelos eventuais prejuízos à população acaba constituindo uma nova agressão ao direito de greve e tende a ser inserida na própria dinâmica do conflito, que é a de uma luta social para avanço da ordem jurídica, repita-se, e se verá, por isso mesmo, sob o risco de sofrer abalo em sua autoridade.
Claro que tudo isso tem muito mais valor no plano teórico das normas jurídicas compreendidas e aplicadas com a racionalidade do Direito Social, porque, em concreto, o direito de greve é sistematicamente desrespeitado pelos empregadores e estes têm sido auxiliados nesta atitude pelas instituições cuja função seria a de garantir o direito de greve, sempre sob o argumento falseado de que estão privilegiando outros valores, como o direito de ir e vir, o direito individual de trabalhar, o direito de manter a atividade produtiva e o direito à prestação de serviços públicos. Mas foi exatamente para a se contrapor a esses direitos que se conferiu o direito de greve aos trabalhadores, entendidos enquanto classe e não como individualidades!
Aliás, esses direitos têm sido privilegiados até o ponto extremo não apenas de impedir que a greve exista enquanto expressão do conflito, com todas as dinâmicas de uma luta, mas também de punir todos os trabalhadores que, compreendendo a ilicitude da repressão, resolvem defender, com dignidade e necessária coragem, os seus direitos.
A jurisprudência trabalhista admite, é verdade, a dispensa por justa causa no caso de participação em greve declarada abusiva ou ilegal, mas esse efeito, conforme prevê essa mesma jurisprudência, depende da individualização da conduta, exigindo-se uma participação ativa e a prática de atos que possam, em si, quebrar, de forma indelével, o vínculo de boa-fé, extrapolando, pois, a própria greve, uma vez que a ordem jurídica internacional é bastante rígida quanto à rejeição de qualquer prática do empregador que possa se aproximar de uma discriminação sindical.
Essa noção está muito clara no entendimento do TST, no sentido de que: “A simples adesão ao movimento paredista não constitui falta grave, porquanto somente atos de violência desencadeados por força desta paralisação conduzem ao reconhecimento da justa causa” (RR 546287/ 99, Relator desig. Ronaldo José Lopes Leal) e de forma ainda menos restritiva no STF: “A simples adesão à greve não constitui falta grave” (Súmula 316).
Pela simples ausência ao trabalho, no caso da greve declarada ilegal e, assim mesmo, somente depois de transitada em julgado a decisão, o empregador, portanto, poderia, no máximo, efetuar o desconto dos salários, sendo que uma justa causa somente adviria pelo abandono do emprego, que exige um completo desinteresse pela continuidade no trabalho (art. 482, da CLT), do que não se trata, evidentemente.
No ano passado, o governo do Rio de Janeiro decidiu pela dispensa coletiva e por justa causa de trabalhadores durante o curso da greve, alegando, meramente, o descumprimento da ordem judicial que havia decidido pela ilegalidade da greve. Viu-se, no entanto, em enorme dificuldade jurídica diante da aplicação dos preceitos acima.
Neste ano, agiu com maiores cuidados para tentar escamotear sua verdadeira intenção de punir os trabalhadores em greve, notadamente os líderes do movimento. Esperou a greve acabar, computou os dias de faltas ao trabalho após a deliberação da ilegalidade e somou a isso outros argumentos ligados à atuação do trabalhador na greve, além de integrar o histórico dos trabalhadores, pinçando faltas individuais que estes tiveram ao longo de sua vida profissional na instituição.
Como noticia a reportagem de Cláudia Freitas do Jornal do Brasil, “no comunicado de demissão recebido por Bruno, assim como por outros representantes do movimento grevista, a Comlurb citou que o funcionário se ausentou sem justificativa em ao menos sete oportunidades no mês de março e que os grevistas desrespeitaram decisão judicial do TRT (Tribunal Regional do Trabalho), que declarou liminarmente a abusividade e a ilegalidade da greve. Disse ainda que o empregado “comandou, incentivou e participou de piquetes e ações para coagir e forçar os demais empregados a aderir à greve ilegal”.
Percebe-se, pois, claramente, a adoção de “cuidados” jurídicos para enquadrar melhor a justa causa dos grevistas, para tentar obscurecer a real motivação política do ato, traduzida na punição daqueles que incentivaram e impulsionaram o movimento grevista, o que representa a transmissão de recados tácitos do governo aos garis: “não negociaremos com grevistas”, “não toleraremos greves”, “vamos excluir os trabalhadores quem lutam por melhores direitos”.
Ora, não há como deixar de apontar a ilegalidade flagrante das dispensas, que foram, isto sim, violências explícitas aos trabalhadores, pois as cartas sequer individualizam as condutas e essas não foram minimante apuradas. Nem se diga que não seria preciso descer a essas especificações, como normalmente se dá nas demais “dispensas” de trabalhadores, porque não se está referindo a um caso “normal” ou de uma dispensa por justa causa isolada. Há um contexto histórico por detrás e que está ligado, nada mais, nada menos, à mais importante greve ocorrida no Brasil desde a greve dos petroleiros, em 1995.
E mesmo sem adentrar esse potencial histórico da greve dos garis do Rio de Janeiro, o fato é que o direito de greve, protegido contra discriminação, gera presunções a favor dos grevistas, exigindo-se do empregador prova contundente para afastar a presunção, conforme Ementa abaixo:
“DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. REINTEGRAÇÃO. 4.1 – O entendimento desta Corte superior é no sentido de que ônus da prova da dispensa não discriminatória cumpre ao empregador. Isso porque o direito de rescisão unilateral do contrato de trabalho, mediante iniciativa do empregador, como expressão de seu direito potestativo, não é ilimitado, encontrando fronteira em nosso ordenamento jurídico, notadamente na Constituição Federal, que, além de ter erigido como fundamento de nossa Nação a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1.º, III e IV), repele todo tipo de discriminação (art. 3, IV) e reconhece como direito do trabalhador a proteção da relação de emprego contra despedida arbitrária (art. 7.º, I). 4.2 – Esta Corte, inclusive, sinaliza que, quando caracterizada a dispensa discriminatória, ainda que presumida, o trabalhador tem direito à reintegração, mesmo não havendo legislação que garanta a estabilidade no emprego, consoante a diretriz da Súmula 443 do TST e de precedente jurisprudencial. 4.3 – No presente caso, emerge dos autos a presunção de que a dispensa do reclamante, portador de glaucoma congênito e em vias de realizar cirurgia, por iniciativa do empregador, foi discriminatória e arbitrária, até porque não houve nenhuma prova de que ela ocorreu por motivo diverso, constituindo, portanto, afronta aos princípios gerais do direito, especialmente os previstos nos arts. 1.º, III, 3.º, IV, 7.º, I, e 170 da Constituição Federal. Recurso de revista conhecido e provido. PROCESSO Nº TST-RR-1996700-79.2006.5.09.0011, 7ª. Turma, Ministra Relatora, Delaíde Miranda Arantes).”
4. Conclusão
É por demais importante que se compreenda de uma vez por todas que a greve, mesmo estando inserida na órbita do direito, é a explicitação de um conflito, sendo que se foi conduzida à ordem jurídica o foi exatamente para conferir aos trabalhadores as garantias necessárias para que possam, concretamente, defender os seus interesses. Aliás, nem foi só isso, pois que, sobretudo, partiu-se do reconhecimento estratégico de que ao não se permitir aos trabalhadores essa possibilidade de confronto dentro da ordem capitalista só lhes restaria a luta pela superação do próprio modelo de sociedade. Assim, talvez essa forma reiterada e assumida das instituições públicas e privadas de negarem aos trabalhadores o direito de greve constitua um elemento revelador da verdadeira função do direito e do Estado dominados pela racionalidade burguesa, pondo-se a um exame mais detido e crítico da classe trabalhadora.
Desse modo, a atitude da Comlurb de levantar “faltas” cometidas pelos líderes da greve ao longo do percurso da sua vida profissional, de modo a conferir uma pretensa organicidade a atos isolados e episódicos, e atribuir gravidade, tomando-se como parâmetro o comportamento individual praticado em épocas de relações estabilizadas e de conflitos contidos, a atos praticados pelos trabalhadores na dinâmica de um conflito de greve, é juridicamente insustentável. Mais do que isso, constitui, em si, um ato ilícito, juridicamente punível, nas esferas administrativa, civil, trabalhista e penal, podendo implicar, inclusive, em perda da função pública, vez que baseada na criação de um disfarce para tentar obstar a compreensão de sua intenção punitiva, ao mesmo tempo em que é uma ofensa à inteligência média de todos aqueles que ainda se percebam como seres humanos.
São Paulo, 04 de maio de 2015.
(*) Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)
Foto: Mídia Ninja