Por Maria Cristina Fernandes.
Duas portas, com abertura por digital, separam o hall do quinto andar do edifício Matarazzo do banheiro mais acessível ao visitante. Sede da Prefeitura de São Paulo desde 2004, o prédio de 14 andares, construído em 1939 para abrigar a administração das indústrias que lhe deram o nome, sempre manteve banheiros limpos no andar que abriga o gabinete do alcaide. Com a posse de João Doria, os sanitários receberam um banho de loja, mais especificamente da Ultrafarma, maior rede de farmácias on-line do país. Ganharam difusor de fragâncias, com varetas de madeira, e sabonete líquido, em frascos de vidro. Os apetrechos deram aos banheiros uma suave fragância capim-limão.
No banheiro próximo ao gabinete do prefeito, a reforma foi mais completa. Além do capim-limão, ganhou louça nova, torneiras e metais dourados. Trocou ainda as toalhas descartáveis por peças felpudas beges, duas penduradas em hastes e três mantidas em rolinhos numa bandeja de acrílico.
Os banheiros da prefeitura já foram mais concorridos. Não se fazem mais necessários para quem precisa retocar a maquiagem ou ajeitar o nó da gravata antes da audiência com o prefeito. O hall do quinto andar ganhou espelhos do piso ao teto. A partir deles se multiplica a imagem das recepcionistas loiras, de saia justa e salto agulha, que conduzem os visitantes para o gabinete do chefe.
O mecenas dos banheiros, Sidney Oliveira, dono da Ultrafarma, é um daqueles que doou medicamentos para as farmácias dos postos de saúde, por falta de provisionamento de seu antecessor, na justificativa do prefeito. A doação, que envolveu farmácias e laboratórios, está pendente de liberação das autoridades fazendárias, porque requer isenção de impostos. Os medicamentos têm prazo de validade mais curto (11 meses) e a prefeitura se encarregará do descarte e incineração, encargo encarecido pela legislação, daqueles que ultrapassarem o prazo de validade.
A exemplo dos banheiros da prefeitura, as farmácias que atendem os usuários dos postos municipais também vão passar por uma reforma. O prefeito pretende que saiam dos postos, se multipliquem e ganhem capilaridade com a participação da iniciativa privada. O setor, sob acirrada concorrência no município, desbravará novas fronteiras na periferia.
Para não deixar dúvida da centralidade do tema em sua agenda de governo, o prefeito gravou vídeo – e o divulgou em rede social, sem pronunciar a marca ou seu dono – em que recomenda vitaminas da Ultrafarma durante reunião matinal do seu secretariado.
O empresário que fez do prefeito garoto-propaganda de seus produtos já cumpriu pena em liberdade por receptação de mercadoria roubada e falência fraudulenta de uma antiga farmácia. Hoje atribui o ocorrido a uma armação. Com planos de construir uma megaloja na zona sul de São Paulo e expandir seu negócio para a China, Oliveira é patrocinador do Lide, empresa de eventos da qual o prefeito se licenciou e hoje é gerida por seu filho de 23 anos.
A Ultrafarma é apenas uma das muitas empresas que o prefeito de São Paulo atraiu para fazer contribuições ao município desde a posse. Faz questão de citar aquelas que reformaram albergues, doaram vans para a manutenção das marginais, iluminaram a ponte estaiada, forneceram roupas para moradores de rua e uniforme para a guarda civil. Repagina, no serviço público, a montagem de seus eventos no Lide, em que parte da infraestrutura é fornecida por parceiros em troca de cotas de patrocínio.
O prefeito dá tanta publicidade aos doadores que já circula em rede social a paródia do hino brasileiro se Doria um dia chegar à Presidência da República (Num posto Ipiranga às margens plácidas/ De um Volvo heroico Brahma retumbante/ Skol da liberdade em Rider fúlgido/ Brilhou no Shell da pátria nesse instante/ Se o Knorr dessa igualdade/ Conseguimos conquistar com braço Ford/ Em teu Seiko, ó liberdade/ Desafio nosso peito à Microsoft/ O Parmalat, Mastercard, Sharp, Sharp/ Amil um sonho intenso, um rádio Philips/ De amor e de Lufthansa à terra desce/ Intel formoso céu risonho Olympicus/ A imagem do Bradesco resplandece/ Gillette pela própria natureza/ És belo Escort impávido colosso/ E o teu futuro espelha essa Grendene/ Cerpa gelada/ Entre outras mil é Suvinil/ Compaq amada/ Do Philco deste Sollo és mãe Doril/ Coca-Cola/ Bombril).
De tanto ser cobrado sobre as contrapartidas à generosidade empresarial, Doria já não tem a mesma fleuma para discorrer sobre o tema. Irrita-se ante a incredulidade do interlocutor de que é capaz de convencer empresários a devolver à cidade um pouco daquilo que os consumidores paulistanos lhe deram. E se mostra inconformado que a desconfiança em relação à mão que lava a outra nas relações público-privadas expostas pela fartura de sabão da Lava-Jato se estenda ao seu mandato.
A estupefação com o arauto da publicidade que tomou assento no Anhangabaú encontra abrigo no artigo 37 da Constituição que prevê a impessoalidade como princípio da administração pública, mas a regra é tão antiga quanto seu descumprimento. Delegacias de polícia, equipadas, do sofá aos computadores, por comerciantes locais, estão aí para lembrar que o poder não tolera vácuo. Como não vê outra maneira de ver os postos policiais em funcionamento em muitos lugares do país, a população se resigna. A prática é tão aceita quanto o estímulo redobrado dos policiais agraciados em proteger o patrimônio dos doadores.
Parece haver pouca distinção entre a doação de motocicletas para a Companhia de Engenharia e Tráfego de São Paulo e os bancos de praça que, dos mais recônditos grotões brasileiros ao Central Park, são patrocinados por particulares. Para ficar num precedente paulistano, é difícil frequentar uma praça na cidade que não tenha plaquinhas fincadas no jardim com o nome de empresas mantenedoras da área.
O que particulariza a prática na gestão Doria é que o volume de doações no curto espaço de tempo desde a posse se alia à disposição do prefeito em lhes dar publicidade e à sua intenção de promover o que chama de “maior programa de privatização múltiplo” já havido. Além do altruísmo dos doadores, admita-se que a atitude guarde relação com a torcida para que a administração seja bem-sucedida. É legítimo que o prefeito ou aquele que ainda é a principal liderança de seu grupo político, o governador Geraldo Alckmin, venha a canalizar a inquietação do empresariado com um nome para chamar de seu na sucessão presidencial de 2018.
Não parece haver norma que os impeça de fazê-lo. Estudiosos de direito público, como Carlos Ari Sundfeld, ainda espera ações públicas incorretamente influenciadas pelos doadores para atestar se há irregularidades nas práticas de Doria. O prefeito de São Paulo prossegue na certeza de estar blindado às inovações da jurisprudência que, desde o mensalão, passou a dispensar o ato de ofício para condenar corruptos. O agente público beneficiado por uma vantagem ficou passível de cana mesmo se não ficar comprovado que, em contrapartida, por exemplo, dispensou seu benfeitor de licitação.
Se as práticas ainda margeiam a ilegalidade, a desconfiança dos jornalistas tem suas origens na carreira de gestor que o prefeito ainda hoje proclama como sua única vocação. Como Doria ascendeu na vida empresarial retribuindo seus mais generosos patrocinadores com acesso privilegiado aos palestrantes de seus eventos, o prefeito-gestor custa a convencer ter abandonado tão repentinamente o modus operandi. Ao empenho da imprensa em busca das digitais das contrapartidas corresponderá a atenção redobrada da administração com a transparência dos seus atos.
No primeiro dia de sua gestão Doria não se furtou em aparecer vestido com o uniforme da empresa que presta um dos serviços mais cobrados pela população, a coleta de lixo. A administração municipal ainda está por demonstrar que a coleta de lixo tenha melhorado sob o risco de o prefeito ser cobrado por propaganda enganosa.
No encerramento da Olimpíada do Rio, o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, desceu ao centro do Maracanã vestido de Super Mario, o personagem do jogo campeão de vendas da Nintendo, carro-chefe das exportações japonesas. Com a política de conteúdo nacional desmontada pela hecatombe da Petrobras e o país cada vez mais à espera da salvação da lavoura, a opção tupiniquim pela exaltação da natureza e cultura nacionais não foi apenas politicamente correta. Era a única possível de um Estado capturado por interesses que não ousam dizer seu nome.
O prefeito de São Paulo reivindica o mérito de expor esses interesses à luz do sol. Ao contrário de Abe, no entanto, Doria não faz distinção entre multinacionais e empresas nacionais, conquanto entreguem a mercadoria. Revelam-se, assim, as razões pelas quais prefere ser conhecido como gestor a político. Se não é o governo que atende a população, mas os empresários, a política beira a irrelevância. Abandona a mediação de interesses para fomentar o ódio aos culpados. No caso de Doria, a petistas e pichadores. Parece pouco, especialmente depois de um carnaval marcado pelo fora-Temer, mas pode dar ao inquilino do Edifício Matarazzo a chance de colocar sua carreira política a salvo da maldição que atinge os ocupantes do cargo e chegar a 2018 fresco como uma fragância de capim-limão.
Fonte: Controvérsia.