O mal se alastra

Por Carmen Susana

Quem circula pela BR 101 no trecho Paulo Lopes- Florianópolis – acompanhando a linda Serra do Tabuleiro vai cruzar, forçosamente, com vários riozinhos e riozões: Maciambu, Paulo Lopes, Rio da Madre, do Neto, do Brito, Aririú, Cubatão. Este nasce em Águas Mornas, é o principal responsável pelo abastecimento de vários municípios da Grande Florianópolis, aí compreendida a capital. Não por acaso, nos anos de 1970, foi criado o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro(PEST) – dá para conferir na página do ICMBIO, onde fica evidente que há décadas já sabiam bem que esta potência hídrica seria fundamental para o futuro da região. Tinham em mente, é claro o desenvolvimento capitalista, e de quebra, a vida das pessoas que precisam existir pra fazer este funcionar.

O Parque surge como fruto de uma certa consciência da finitude de recursos- hídricos, em especial – expressando localmente um momento histórico do que chamamos de consciência ecológica (Clube de Roma e correlatos): várias legislações de caráter protetivo advém desta época, e contaram – como foi o caso, aqui – com o trabalho bem sério de cientistas e pesquisadores.

Recentemente, e mesmo sem ter sido colocado, de fato, em prática, o PEST foi cortado em pedaços – “recategorizado”- em Unidades menores, apesar dos protestos, que se juntaram às lutas contra a alteração do Código Ambiental local, ali por 2009. Mais uma vez, aliás, o estado de SC se colocou na frente do ranking das contra-reformas (a classe dominante local merece, a propósito, o prêmio “Joãozinho do passo certo” primeirinha da turma na dianteira na tarefa “maldades contra o povo”.

A água é um bem natural, é vital, direito de humanos, de plantas, de bichos. Mas virou mercadoria e há tempos anda inacessível a milhares de pessoas no mundo. Dados recentes (do Instituto Trata Brasil) apontam para 35 milhões de pessoas sem acesso à água potável, no Brasil, ao passo que são desperdiçados milhões de litros ( cerca de 38% do total) no processo de distribuição e descarte. Por isto um trivial banho se coloca como um luxo pra muites, às vezes até mesmo uma odisséia. Não por acaso, as expressões “bainho tomado” e similares gozam de tanta popularidade no país. Um paradoxo total, porque a água nos sobra!

Até a ONU tem tratado do tema, desde a Conferência de Mar del Plata, 1977. Depois disto ao direito à agua veio se articulado com outros direitos humanos essenciais. Convenções envolvendo mulheres, crianças, pessoas com deficiência- incluem forçosamente acesso à água – e ao saneamento, que lhe é correlato.

É neste contexto que se inscreve a ação da manhã do dia 10 passado, quando a água que abastecia a Ocupação Marighella- foi cortada acintosa e violentamente pelas forças da ordem. Sim, pelas mãos do assim chamado poder público – o mesmo que fez vistas grossas pro abandono dos prédios, para as famílias sem teto, paro o abandono da área (“descaso”). Trabalhadores e famílias – crianças e idosos – estão desde então sem a água pra beber, para comer (não precisa listar os usos que fazemos dela para reproduzir a vida), que ao lado segue a correr, e aos borbotões. Cortar acesso à agua de gente em busca de teto não é coisa miúda: complica o trabalho, a saúde, toda a lida. Estratégia perversa de acuamento e de “tacação de terror”, um absurdo.

Cada ação que acontece nestes dias deixa claro a luta de classes que está no centro do embate, mesmo que conte com a ação -insana, patética- e brutal – de outros “moradores e moradoras” do bairro, sob o olhar oblíquo e dissimulado dos agentes da ordem. Vistas grossas são o quê, num contexto de conflito? “O mal se alastra pelo planeta”, diz uma canção cantada por Glória Bomfim – “e a força do mal zomba e dança”. O real – que chamávamos descaso – sai da toca e já se vê!

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