O mal menor como deserção estratégica. Por Raúl Zibechi.

A política do “mal menor” centra-se no curto prazo, sem medir as consequências a longo prazo. A principal delas é a perda de horizontes estratégicos, de vontade de mudança, o que passa necessariamente pela aquisição de resiliência suficiente para desafiar o estado das coisas nadando contra a corrente.

Foto: Stephane Mahe/Reuters

Por Raúl Zibechi.

À medida que a situação internacional se torna mais tensa e os momentos de risco nuclear se aproximam, os panos quentes e a política do “mal menor” mostram sérias limitações e, o que é ainda pior, podem levar à perda de horizontes transformadores justamente quando são mais necessários do que nunca.

A esquerda europeia e estadunidense caíram nessa armadilha que os leva a escolher entre Joe Biden (agora Kamala Harris) para impedir a vitória de Donald Trump. A esquerda francesa fez algo semelhante no passado, apoiando Emmanuel Macron para bloquear o caminho de Marine Le Pen. Grande parte da sua política gira em torno de travar a extrema direita, mas para isso são forjadas alianças que aceleram a deriva da esquerda para o centro, ou seja, para o nada.

Leia mais: Milei e a sexualização do discurso.

A Nova Frente Popular Francesa foi tecida através de uma aliança com socialistas e verdes, cujas políticas são profundamente neoliberais, curvam-se perante os Estados Unidos e tomam o lado da guerra na Ucrânia. No cenário pós-eleitoral, o principal beneficiário foi Macron e os socialistas, e quem perde é La Francia Insoumise, que ficou presa na aliança de facto entre os dois “centros”, que cresceu com o discurso contra a extrema-direita

Os meios de comunicação que mais intensamente promovem políticas contra a extrema-direita são The New York Times, The Guardian e El País, entre muitos outros, mas ao mesmo tempo apoiam a escalada contra o povo palestino e chamam a intensificar as guerras em curso.

A extrema-direita revelou-se um espantalho nas mãos da direita neoliberal (na qual incluo os chamados socialistas) para legitimar o modelo neoliberal extrativista. Querem convencer-nos de que existe uma enorme diferença, por exemplo, entre Biden/Harris e Trump, ou entre Democratas e Republicanos. Com isto não pretendo insinuar a menor indulgência para com esses políticos ultra e com essas políticas abertamente racistas e xenófobas.

Contudo, na realidade existem muito poucas diferenças entre a direita e a extrema-direita, mas também vemos muitas semelhanças com as social-democracias. Nas questões centrais, digamos nos assuntos de Estado, predominam os pontos comuns: são ferozmente anti-independência do Estado espanhol, beligerantes a nível internacional e defendem com unhas e dentes o modelo de acumulação por espoliação em todo o planeta que está aprofundando o caos climático.

Depois de Gaza, o mundo é diferente. Uma das mudanças centrais é que a velha contradição direita-esquerda está se evaporando e à escala planetária está surgindo um novo confronto que tende a ser o principal: aquele que se opõe ao Norte e ao Sul globais. Este conflito não é novo, começou pelo menos durante o processo de descolonização nas décadas de 1950 e 1960, foi fortalecido com o Movimento dos Não-Alinhados e a Conferência de Bandung em 1955.

As guerras na Ucrânia, em Gaza e no Oriente Médio estão mudando o panorama mundial. O fato de a maioria do Sul Global não ter apoiado as sanções contra a Rússia promovidas pelos Estados Unidos e apoiar a Palestina é um sintoma importante desta mudança profunda.

Na medida em que o governo Democrata dos Estados Unidos se recusa a negociar a paz na Ucrânia e dá carta branca a Netanyahu para continuar travando a guerra em Gaza, na Cisjordânia e agora também no Iêmen, não é possível continuar a pensar que existem diferenças de fundo entre esquerda e direita, exceto nos depoimentos.

Tenho certeza de que muitas pessoas rejeitam esse ponto de vista e podem até ficar com raiva. Mas em tempos tão difíceis e extremos como os que vivemos (insisto que a opção nuclear está muito próxima), devemos questionar as estruturas mentais que cultivamos durante décadas; sermos capazes de pensar contra as nossas tradições como pessoas de esquerda, de questionar tudo e não apenas o que os do outro lado fazem e dizem.

Tomemos como exemplo o debate sobre as mudanças climáticas. A direita nega e não está disposta a fazer nada para impedi-lo, apoiando até o consumo massivo de hidrocarbonetos. Os progressismos falam muito sobre o clima, promovem eventos como as Conferências Anuais sobre Mudanças Climáticas (COP), mas na realidade nada muda porque se recusam a transformar o sistema de produção e consumo, deixando eventuais mudanças nas mãos do mercado.

Em suma, o que separa a direita e a esquerda são fundamentalmente os discursos. Não deixo de ter em mente que ambas as correntes tendem a desenvolver políticas diferentes em alguns aspectos: percentagem de reajustes salariais e de pensões, mais ou menos rigor com os migrantes, mais ou menos machismo (mas sem questionar o patriarcado, o que implicaria a dissolução dos exércitos, como diz María Galindo) e outras coisas que não são menores.

Nem o maior aumento salarial imaginável, nem uma legislação mais rigorosa sobre violadores e assediadores, nem a legalização de todos os migrantes são capazes de tocar o cerne do sistema. Hoje esse cerne é a guerra e não compreender isto significa entrar numa possibilidade que é a que permite o massacre e o extermínio de palestinos e iemenitas, e dos povos indígenas da América Latina.

A política do “mal menor” centra-se no curto prazo, sem medir as consequências a longo prazo. A principal delas é a perda de horizontes estratégicos, de vontade de mudança, o que passa necessariamente pela aquisição de resiliência suficiente para desafiar o estado das coisas nadando contra a corrente.

Acaso o “estado de exceção” não era a regra para os oprimidos, como disse Walter Benjamin? Com o tempo, a conveniência prevaleceu: “Nada corrompeu mais a classe trabalhadora alemã do que a ideia de que eles estão nadando com a corrente”. Nessa natação confortável, “a classe desaprendeu tanto o ódio como a capacidade de sacrifício”, afirmou na tese XII sobre a história.

É evidente que não estamos à altura da tarefa.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

Tradução: TFG, para Desacato.info.

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