Por Carlos Weinman, para Desacato. info.
O olhar de Perséfone estava maravilhado com a hospitalidade da família de Adriano, em uma tarde que foi marcada pelo chá com bolo, que por sinal a menina achou delicioso, ao mesmo tempo, viu a chuva pela janela, um marco, pois o fim do período das secas havia chegado, começando o ciclo das chuvas, foi uma experiência muito rica, onde a menina conheceu uma nova amiga, seu nome era Hannah, tinha a sua idade, as duas brincaram muito, quando chegou o início da noite, Adriano convidou os viajantes para passarem a noite em sua casa, Roberto e seus amigos aceitaram, Hannah pegou Perséfone pelo braço e levou para o seu quarto, as duas saíram de lá quando ouviram uma música, o que era muito comum na casa deles, tratava-se da música Inútil da banda Ultraje a Rigor, foi quando ouviram Adriano falar:
– Essa música tem uma grande crítica, ela foi gravada em 1983, mas somente pode ser ouvida por nós brasileiros em 1985, é interessante destacar que nesse período tínhamos o movimento das diretas já, uma grande luta contra a ditadura, aliás muitas músicas eram censuradas, não podiam ser tocadas, principalmente se mencionassem críticas aos governantes.
Roberto – Muito interessante a sua seleção de músicas, você continua sendo um grande admirador do rock nacional. É interessante que essa música começa com a crítica que não sabemos eleger nossos representantes, fazemos e produzimos muitas coisas, mas não usamos para o bem do nosso povo.
Hannah – Será que nós melhoramos nesse sentido?
Deméter – Desde quando crianças se metem nesses assuntos?
Inaiê – Não concordo contigo minha irmã! Penso que as crianças são espertas e talvez não estejam tão contaminadas com o pensamento egoísta. Além disso, não devem ser proibidas de pensar e questionar, pelo contrário, devem ser estimuladas ao pensamento crítico, quem não quer isso, apenas tem interesse em formar pequenos serventes, serviçais e não cidadãos.
Deméter – Concordo em parte contigo! Porém, devemos deixar para uma certa idade, quando as crianças atingirem a maioridade.
Inaiê – Enquanto isso vamos ensinar as nossas crianças trabalharem e serem obedientes sem questionar, vão seguir regras sem saber o sentido delas, em nome de valores que desconhecem, uma formação bastante interessante, não acha? Parece ser mais uma escravidão das mentes, onde as crianças e adultos são colonizados pelo imaginário, serão despertados para os desejos por objetos, produtos da moda, de tecnologias, mas não aprenderão a ler o mundo a sua volta, as interligações entre ética, política, economia, cultura e até mesmo o trabalho. Vejo que a sua postura é de uma senhora colonizada, que quer reproduzir nas mentes das suas crianças os princípios da ordem sem sentido.
Deméter – Você é contra a ordem, contra os princípios e os valores? Você fala isso por não ter filhos!
Inaiê – Não sou contra ordem, regras ou valores, mas sim contra a postura de seguir sem saber o motivo, as motivações, pois o preconceito e as várias formas de violência são reproduzidos por aqueles que não aprenderam a dialogar com as diferentes possibilidades e variações. Você quer uma sociedade democrática ou não?
Deméter – Avaliando, por esse lado, você está certa, mas não caberiam aos pais decidirem sobre isso?
Adriano – Vejo que os pais devem sem dúvida acompanhar, mas considerando que somos o resultado de um país marcado pela colonização, a escola e a educação têm o desafio de promover a democracia, a ditatura não pode ser uma opção, pois liberdade não significa subserviência ou ausência de regras.
Deméter – Dessa forma, para haver democracia é necessário ter uma educação que prepare as pessoas para ela, como diria o filósofo Kant, “o ser humano não é nada além daquilo que a educação faz dele”.
Ulisses – Ao mesmo tempo, esse princípio serve para reproduzir um determinado modelo, uma tirania, já que é necessário ter uma educação que faça com que as pessoas aceitem, como poderíamos pensar a partir da música do Ultraje a Rigor, a incapacidade de fazer uso do que temos e fazemos envolve uma concepção de educação.
Adriano – Por esses motivos é necessário entender o que é a democracia, começando com a palavra, verificamos que ela é definida como governo do povo, pois temos o termo “demo” que se refere a povo e “cracia” que corresponde a quem está a frente. No entanto, povo não significa todos, é uma categoria política, isto é, quem toma as decisões é que será definido como cidadão, não apenas morador da cidade. Agora fica a questão somos cidadãos ou moradores da cidade?
Perséfone – O que eu preciso para poder aprender tomar decisões que vão além das minhas brincadeiras, que se referem a todos?
Inaié – Essa menina está ficando inteligente igual a tia! Essa questão é muito boa, para começar devemos saber o que é a política, para os gregos antigos, havia uma separação entre bem público e bem privado, as ações que tinham por objetivo cuidar do bem de todos correspondia a política, o bem maior, já que a coletividade deve vir em primeiro lugar, não o bem privado, que corresponde as coisas da casa, de um indivíduo, por exemplo, se alguém usa da estratégia para fazer do bem público um benefício para si, ele está invertendo a ordem dos valores, ou seja, ele pensa em si em primeiro lugar e não na sociedade, por isso estaria corrompendo com a ordem de valores, disso resulta o que chamamos de corrupção.
Perséfone – Penso que é difícil aprender a pensar na coletividade, em ser um cidadão ou cidadã, o que será necessário para isso?
Hannah – Eu também acho difícil essa resposta, mas lembrei que meu pai falou de uma filósofa, muito famosa e foi nela que ele se inspirou para dar o meu nome.
Adriano – É verdade minha filha, a filósofa é Hannh Arendt, que foi uma das mais influentes do século XX, sofreu com perseguições, por ser judia e vivia na Alemanha, que no seu tempo era governada por um ditador, Adolf Hitler.
Perséfone – Quer dizer que ele não aceitava que pessoas falassem coisas críticas sobre ele?
Adriano – Pior do que isso, ele perseguiu e dizimou pessoas movido pelo preconceito e pela sede de poder.
Hannah – Papai, antes de contar essa história fale mais sobre a filósofa, principalmente do que ela falava sobre a cidadania.
Adriano – Conforme Hannah Arendt, os gregos tinham bem clara a noção de política. Essa autora escreveu uma obra que ficou muito famosa, intitulada A Condição Humana, a autora diz que a condição humana corresponde a totalidade das atividades e capacidades humanas, envolvendo não apenas condições, mas as relações, as atividades e potencialidades do ser humano.
Ulisses – Certo, então na medida que novas tecnologias surgem, elas passam ser parte da condição humana, por exemplo, para pessoas serem incluídas, o acesso à internet passou ser uma necessidade, podemos dizer que a condição humana é produzida pelo conjunto de relações que são produzidas socialmente, envolvendo os conhecimentos, as técnicas, as formas de interação, não se reduzindo a uma questão meramente biológica.
Perséfone – Tudo isso é muito complicado, pois as pessoas deveriam ter acesso as tecnologias, mas grande parte da humanidade não tem acesso a moradia, muitos passam fome, não tem acesso a um sistema de saúde de qualidade, que condição humana é essa?
Ulisses – Para piorar, não temos o acesso a vida política, diria Hannah Arendt, já que existem alguns elementos que fazem parte da condição humana, por exemplo, o labor.
Hannah – O que é labor?
Ulisses – Para a filósofa, labor corresponde a atividade que o nosso organismo exerce para viver.
Adriano – Já o trabalho, que também é parte da condição humana, diz respeito ao mundo artificial que criamos, o ser humano se lança, constrói e inova possibilidades, cria uma espécie de mundo virtual, independentemente de haver tecnologia da informação ou não, pois a própria linguagem corresponde a uma forma virtual, abstrata de memória.
Deméter – Penso que a tecnologia passa ser apropriada e constitui em uma necessidade para pessoas serem incluídas.
Adriano – Exatamente, por exemplo, o surgimento do telefone fez com que esse fizesse parte da condição humana.
Ulisses – É verdade, mas ainda existe uma forma de vida que a autora descreve que os seres humanos modernos perderam.
Perséfone – Qual?
Ulisses – A vida ativa, essa corresponde a atuação do ser humano na sociedade, através da política, do uso do discurso, da fala, corresponde a uma atividade exercida diretamente entre os seres humanos, isto é, não depende das coisas ou da matéria, para exercer a vida ativa as pessoas devem ter o direito da palavra e a possibilidade de decidir para a coletividade.
Adriano – Contudo, é importante destacar que, segundo a filósofa, o homem moderno perdeu a vida ativa, pois ela está ligada a atuação da vida em sociedade, exigindo uma clareza na separação entre bem público e bem privado, o que para os antigos era bem claro. Desse modo, o cidadão grego fazia uso da palavra para discutir as coisas ligadas a cidade. Por outro lado, no contexto moderno, com a invenção do Estado moderno, o contexto público passou ser o espaço dos embates, das disputas de interesses privados.
Inaiê – Faz sentido! Vejo que as pessoas na coletividade buscam espaços para satisfazer seus interesses, o jogo do poder, das disputas por cargos eletivos, não estão voltados para o bem da sociedade, mas pela busca de espaços de interesses privados, por isso vemos muitas empresas assumirem e financiarem campanhas, o que é contraditório, uma vez que elas deveriam cuidar do seu bem particular, sem buscar forças no espaço público, que deveria ser o espaço exclusivo da cidadania, voltado para o bem de todos, existe uma confusão entre a esfera privada e pública.
Roberto – Por outro lado, se observarmos, as redes sociais mostram que muita coisa que deveria ser da esfera privada torna-se pública, surgindo a pergunta onde é o limite do público e do privado? As pessoas cada vez mais tornam públicas as suas intimidades, seus desejos, suas trivialidades, chegando ao ponto da vida das pessoas se tornarem tão públicas que não há mais espaço para a vida privada.
Adriano – Por consequência, Hannah Arendt descreve que a condição humana moderna priva a vida política, a vida ativa, isto é, perdemos a condição de cidadania, os espaços para a voz não são mais tão relevantes, na medida que o bem público e o bem privado não apresentam mais limites tão grandes, no final parece que tudo vira o espaço dos interesses particulares.
Roberto – No final, nos perdemos na vaidade e nos nossos sentimentos egoístas.
Adriano – Você me fez lembrar da lenda da “Alavanca do Ouro”, conta-se que na nossa região, que teve o processo de colonização, a exploração de índios e africanos, as pessoas tinham tudo em grande abundância, ao ponto das panelas, em que cozinhavam o feijão e o arroz, eram feitas de ouro. No entanto, como diz a lenda: “o homem quanto mais tem, mais quer”, eles começaram a cavar por todos os lugares em busca de ouro, até que um dia um escravo encontrou um objeto reluzente, no formato de uma alavanca, como era lei na época, pela lei da escravidão, o pobre escravo tinha que comunicar seu achado, primeiro ao patrão de sua obra, mas ele não aguentou, contou para sua mulher e a notícia se espalhou, todos começaram ir para lá, puseram-se a escavar, o objeto era reluzente, muito lindo, os feitores, por outro lado, sem piedade faziam música com as chibatadas, foi quando apareceu um senhor pedindo água para os escravos, mas esses com o medo da chibatada não deram atenção, até que um escravo, de bom coração, foi buscar água. Em seguida o senhor o abençoou e orientou para que quando a terra gemesse por três vezes ele trata-se de fugir daquele buraco enorme. Quando a terra começou estremecer, o jovem fugiu, em seguida tudo desmoronou, não escapou ninguém, exceto o jovem.
Roberto – Parece ser mais uma das versões das lendas do nosso Brasil, da mãe de ouro, que retratam o processo de mineração que aconteceu em nosso país. A história é interessante, pois traz na lenda a questão da escravidão e da exploração.
Adriano – Gosto de comparar essa história com a visão de Hannah Arendt, faço a pergunta se ainda não estamos em um processo de colonização de mentes, sofrendo as chibatadas da história, se os estranhos do mundo não são aqueles que ainda sofrem, são escravizados, mas continuam buscando pelo ouro. Será que os escravos modernos não são aqueles que sonham em ter a posse das chibatas ou ainda ser o dono de todos? Nesse universo, não há espaço para vida política ou ativa.
Depois do questionamento de Adriano, todos foram dormir, com a inquietação se a vida ativa ou cidadã teria espaço na modernidade e ainda se o homem moderno não teria a sua imaginação, sua mente, seu espírito colonizado, com a cultura de muitas ideias que impedem o desenvolvimento de uma democracia estendida a todos e não apenas para alguns, pois quando todos buscam o ouro para si, o certo é que a maioria será soterrada, não havendo espaço para o ser cidadão, apenas para relações de subserviência.
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Carlos Weinman é graduado em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: Estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.