O livre arbítrio e o uso da razão. Por Jair de Souza.

Por Jair de Souza.

Precisamos levar em conta que no Brasil atual, nos Estados Unidos e em diversos outros países, o movimento político de extrema-direita, de cunho nazifascista, vem tendo como sua mais importante base de sustentação de massas pessoas de origem humilde que, desesperadas com as terríveis dificuldades com que se deparam em seu dia a dia, buscam nas igrejas ditas cristãs algum amparo para escapar de sua situação de agonia social.

É inegável que o principal fator de motivação que leva essas pessoas a procurar igrejas que se autodenominam evangélicas cristãs é o enorme peso simbólico que a figura de Jesus desempenha no imaginário de nossa população. É quase que absoluta a visão que se tem de Jesus como o defensor maior daquilo que poderíamos classificar como bondade, justiça, solidariedade e fraternidade.
Com exceção de uns poucos espertalhões que veem no cristianismo um instrumento para ludibriar incautos e fazer fortuna a partir disto, a imensa maioria daqueles que se acercam a essas igrejas fazem-no por um propósito sincero de busca de uma saída digna para o atoleiro de sua vida.

No entanto, o que estamos constatando cada vez com mais nitidez é que a variante do cristianismo que tem predominado entre nossa população mais carente é algo inteiramente diferente daquilo que podemos extrair dos ensinamentos deixados pelo próprio Jesus nos relatos de sua vida encontrados nos Evangelhos. É que, embora nessas passagens, o Jesus que nos aparece esteja sempre vinculado às causas favoráveis aos mais humildes, como a defesa da justiça, da solidariedade e da tolerância, a atenção prioritária aos mais carentes e mais necessitados, ou seja, aos pobres, o posicionamento da maioria das igrejas que apelam para o nome de Jesus se volta para o rumo oposto, com o absoluto privilegiamento dos interesses dos acaudalados, dos que detêm a riqueza, daqueles que exercem o poder.

Na verdade, sem que tenham a coragem de admiti-lo abertamente, boa parte dessas igrejas abandonou por completo os preceitos que Jesus defendia para se dedicarem exatamente a operar em sentido contrário. Por isso, não é mera casualidade que a grande maioria delas se identifique na prática com o bolsonarismo, com o fascismo e, até mesmo, com o nazismo.

Neste processo de usar Jesus como símbolo de atração, ao passo que se elimina de suas pregações o significado de suas mensagens, essas igrejas abandonaram quase que totalmente aquelas partes dos textos bíblicos que se referem à vida efetiva de Jesus para se concentrarem nos textos do Antigo Testamento, especialmente naqueles que lhes abrem a possibilidade de fazer a defesa de inúmeros casos de arbitrariedade e atrocidades que andam sendo praticadas, tanto no Brasil como na Palestina e em outras partes do mundo. Além do mais, convém recordar que alguns dos mais horrendos crimes contra a humanidade ao longo da história foram praticados apelando-se para o nome de Jesus, como, por exemplo, no caso das Cruzadas.

Em vista disto, creio ser conveniente refletir sobre algumas das questões atuais que acabam nos remetendo a uma discussão sobre a interpretação de certas passagens contidas no Antigo Testamento. Ao fazer isto, vamos nos dar conta de como se busca inculcar na mente de gente imbuída de boa intenção certos conceitos e crenças que se chocam frontalmente com o que esperaríamos derivar dos ensinamentos de vida proporcionados por Jesus.

Se aceitarmos como válido o princípio de que Deus é o criador de tudo e de todos, deveríamos levar em conta que:

a) Deus precisa necessariamente representar apenas o bem, nunca o mal;

b) Deus tinha seus propósitos ao criar o ser humano dotado da capacidade de raciocinar;

c) Ao atribuir ao ser humano o direito ao livre arbítrio, Deus lhe indicou que teria de tomar decisões por sua própria conta diante das situações concretas.

Portanto, todo ser humano deve refletir, fazer uso de sua capacidade de raciocinar, antes de acatar qualquer determinação, para não incorrer em práticas do mal.

Por exemplo, se alguém nos diz que Deus tem mesmo um povo escolhido, pois assim está escrito na Bíblia, nossa obrigação é usar nosso poder de raciocinar para comprovar se isto pode realmente ser algo digno de Deus. Devemos nos perguntar: Poderia Deus ser um racista, que dá preferência a um povo em detrimento dos outros? Seria justo que a mera casualidade de nascer em um certo povo servisse para determinar a pertinência ao povo de Deus? Um ser justo e bondoso poderia ser racista, discriminador e cruel a tal ponto?

Ou quando a Bíblia diz que Deus cobrou de Abraão uma prova de lealdade com uma ordem para que ele sacrificasse seu próprio filho. Em lugar de se dispor a cumprir a ordem de imediato, Abraão deveria ter refletido sobre a mesma antes de decidir o que fazer. Ele deveria ter se perguntado: Se Deus é a representação máxima do bem, por que ele está me exigindo prova de lealdade pela prática de uma maldade tão monstruosa? A conclusão lógica a que chegaria é que, para comprovar sua fidelidade aos princípios de Deus, ele teria de rechaçar rotundamente aquele inaceitável pedido.

Também no caso bíblico em que Deus ordena a Josué que entre com suas tropas em Canaã e extermine a todos os seus habitantes, sem poupar nem mesmo as crianças. Poderia um Deus do bem ser um assassino tão impiedoso, um genocida da pior espécie? Outra vez, para atuar em verdadeira consonância com o espírito de um Deus bondoso e justo, Josué jamais poderia ter concordado com a medida. Nesta oportunidade, novamente, Deus deve ter se sentido defraudado.

Nos relatos da vida de Jesus, a gente vê que ele nunca aceita submeter-se a nenhuma determinação que lhe pareça servir a causas malignas, tão somente por estarem elas nos textos considerados sagrados. Ou seja, Jesus nunca toma nenhuma posição sem fazer uso da razão. Ele não acata nenhuma determinação apenas por ela constar na Bíblia.

Como o ser humano nasce dotado da faculdade do exercício da razão e lhe foi atribuído o direito de livre arbítrio, sua obrigação é fazer uso desta capacidade sempre que confrontado com situações que se mostrem pouco claras. Se não fosse para ser empregada em momentos de dúvidas, Deus não criaria o ser humano com esta potencialidade. Em tal caso, o ser humano seria tão somente uma outra espécie animal, pouco se diferenciando dos demais.

Porém, nunca deveríamos culpar a Deus pelos erros que nós cometemos, já que, por termos sido criados com a maravilhosa possibilidade de distinguir o que é certo do que é errado, além de contar com o direito de livre arbítrio, cabe a nós avaliarmos a correção ou incorreção das determinações que nos são atribuídas. Assim, independentemente de que tenhamos ou não crença religiosa, somos forçados a reconhecer que Deus não pode ser responsabilizado por aquilo que diz respeito a decisões de nossa própria alçada.

Para que fique evidente como algumas das mais significativas manipulações dos textos bíblicos foram forjadas, é importante que dediquemos atenção aos trabalhos científicos de arqueologia realizados por alguns estudiosos sérios e escrupulosos no intuito de dirimir dúvidas existentes sobre as narrativas bíblicas e suas correspondentes bases históricas. E, para que não paire nenhuma suspeita, os investigadores aos quais nos referimos estão vinculados ao próprio Estado de Israel e, portanto, não podem ser tidos como meros agentes a serviço do antissemitismo, como gostam de arguir muitos daqueles que não aceitam que sejam feitas críticas a nada que ponha em cheque pontos que dão amparo ao sionismo, neste caso, mais especificamente, a sua vertente majoritária cristã.

Nos enlaces mencionados à continuação, poderemos acessar os vídeos documentários sobre as descobertas reveladas pelas escavações arqueológicas realizadas sob o comando do arqueólogo Israel Finkelstein. Por considerá-los de suma importância para o tema em questão, fiz sua tradução ao português e preparei as respectivas legendas:

Parte 1): www.dailymotion.com/video/x9bub40

Parte 2): www.dailymotion.com/video/x9bub44

Parte 3): www.dailymotion.com/video/x9c2mui

Parte 4): www.dailymotion.com/video/x9bub42

Creio que vale a pena vê-los e refletir sobre seu conteúdo.

Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

O neofascismo e a manipulação da linguagem. Por Jair de Souza.

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