O Limite da Conciliação de Classes: entre a ilusão e a ruptura necessária. Por Aurélio Fernandes

Na Venezuela, os governos de Chavez apostaram em ir além da conciliação ao criar as comunas como base do avanço poder popular rumo ao socialismo.

Imagem: Resumen Latinoamericano

Por Aurelio Fernandes.

A conciliação de classes parte da ideia de que é possível harmonizar os interesses da burguesia e do proletariado dentro de um mesmo projeto de sociedade. No entanto, do ponto de vista marxista-leninista, essa premissa é uma ilusão perigosa. A luta de classes é o motor da história, e não há possibilidade real de equilíbrio duradouro entre exploradores e explorados.

Martha Harnecker apontava que “a política é a arte de tornar possível o impossível”. Mas para a esquerda revolucionária, o “impossível” não é a utopia pacificadora da conciliação, mas a superação do capitalismo por meio da construção do socialismo. Tornar possível o impossível significa criar, em meio à correlação de forças desfavorável, condições para o avanço do movimento de lutas da classe e a transformação radical da sociedade.

Lenin foi categórico ao rejeitar a conciliação com a burguesia. Para ele, os interesses de classe são irreconciliáveis. Qualquer tentativa de harmonização apenas fortalece a dominação da classe dominante, seja por meio do parlamentarismo burguês, do sindicalismo reformista ou da cooptação de lideranças populares.

A experiência da Revolução Russa deixa isso claro. Os mencheviques, que defendiam uma aliança com a burguesia liberal contra o czarismo, fracassaram. Apenas os bolcheviques, que apostaram na independência de classe e na organização dos sovietes, foram capazes de levar a revolução até o fim. A conciliação seria a rendição.

Na América Latina, as experiências de conciliação também mostraram seus limites. O governo de Salvador Allende, no Chile, tentou realizar transformações estruturais dentro da democracia burguesa, mantendo setores da burguesia nacional como aliados. O resultado foi o golpe militar de 1973, que esmagou o movimento popular e instaurou uma ditadura neoliberal.

Guardando as devidas proporções, outro exemplo emblemático é o Brasil. Os governos do PT apostaram em alianças com setores do capital, acreditando que poderiam governar para todos. Implementaram políticas sociais importantes, mas não tocaram nos pilares do poder econômico. O golpe parlamentar de 2016 mostrou os limites dessa estratégia: quando os interesses da classe dominante foram ameaçados, a conciliação ruiu.

O Estado, como ensinou Marx, é um instrumento de dominação de classe. Ele não é neutro. Em momentos de crise, revela sua verdadeira face: repressiva, autoritária, a serviço do capital. A conciliação serve, nesse contexto, para desmobilizar a classe trabalhadora e manter a aparência de estabilidade.

A política de alianças, do ponto de vista marxista-leninista, só é legítima se for tática, subordinada à estratégia da revolução. Ou seja, pode-se fazer acordos temporários, mas sem nunca perder a independência de classe e sem iludir o povo com promessas de reconciliação permanente com os opressores.

Harnecker nos lembra que o papel da política revolucionária é abrir caminhos onde só há bloqueios. Isso exige ousadia, criatividade e organização. Não se trata de negar a correlação de forças, mas de transformá-la. A política, nesse sentido, é uma luta consciente pelo avanço do poder popular que só se concretiza na tomada do poder pelas trabalhadoras e trabalhadores da cidade, do campo e das florestas.

Mesmo com muitas limitações, movimentos como o MST no Brasil expressam essa ideia na prática. Em vez de esperar pela reforma agrária via instituições burguesas, constroem assentamentos, escolas, cooperativas. É a política revolucionária que cria o possível em meio ao impossível, a partir da ação coletiva e organizada.

Na Venezuela, os governos de Chavez apostaram em ir além da conciliação ao criar as comunas como base do avanço poder popular rumo ao socialismo. Enfrentou a burguesia interna e o imperialismo, ainda que com contradições. Essa tentativa de ruptura revelou tanto o potencial quanto os limites da transformação dentro do Estado burguês que se hoje se acumulam nas atuais contradições do Governo de Maduro.

A experiência cubana é outra referência. Lá, a revolução não conciliou: expropriou a burguesia, rompeu com o imperialismo e construiu um novo tipo de Estado. Foi a única forma de garantir conquistas sociais duradouras. Mesmo com bloqueio e dificuldades, Cuba mostrou que é possível avançar sem se render à lógica do capital.

Na prática, a conciliação serve muitas vezes como freio. Ao invés de preparar o povo para a luta, gera desmobilização. Ao invés de formar consciência de classe, reforça ilusões. É uma armadilha que transforma partidos de esquerda em gerentes da crise capitalista.

A superação da conciliação exige clareza ideológica e compromisso estratégico com a revolução. Isso não significa sectarismo ou isolamento, mas firmeza de princípios. Significa construir uma política voltada para os interesses históricos da classe trabalhadora.

O papel dos revolucionários é disputar o poder, não apenas administrar a miséria. E para isso, precisam construir instrumentos próprios: partidos, sindicatos combativos, frentes populares e classistas. Instrumentos que não se confundam com os aparelhos da ordem burguesa.

É claro que a luta é desigual. O capital tem os meios de comunicação, o aparato do Estado, o poder econômico. Mas a força do povo organizado é transformadora. A história prova isso. O impossível só se torna possível quando há coragem para romper com o que parece inevitável.

Como dizia Harnecker, não basta denunciar o sistema: é preciso construir alternativas. Isso exige paciência estratégica, mas também determinação. Exige entender que concessões táticas não podem se tornar capitulações estratégicas.

A política revolucionária é, portanto, a arte de construir poder popular em meio ao caos do capitalismo. De educar, organizar e mobilizar. De avançar sem ilusões, com os pés no chão e os olhos no horizonte.

A conciliação de classes não é um caminho para o socialismo. É, na melhor das hipóteses, uma pausa breve antes da próxima ofensiva do capital. E na pior, uma armadilha que desarma o povo e fortalece os seus inimigos.

Se quisermos tornar possível o impossível — um mundo sem exploração — teremos que rejeitar a conciliação como estratégia. Só assim construiremos uma política à altura do desafio histórico que enfrentamos.

 

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